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No dia 30 de outubro de 2002, durante a 26a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, aconteceu, no Cinesesc, uma mesa-redonda em torno de Alexander Sokúrov e de sua obra. O cineasta se encontrava em São Paulo como convidado do festival, que o homenageava com uma grande retrospectiva. Da mesa, participavam, além do próprio Sokúrov, o diretor da Mostra, Leon Cakof , o jornalista Alvaro Machado, o professor Boris Schnaiderman e eu.

A ideia era que os participantes abordassem sucintamente a importância desse vasta obra e depois cedessem a palavra ao cineasta, para que respondesse às perguntas da mesa e do público presente.Terminada a sessão, houve um coquetel de lançamento de Aleksander Sokúrov, livro organizado por Alvaro Machado e editado pela Cosac Naify, inaugurando a coleção Mostra Internacional de Cinema. O volume continha ensaios de seu organizador e do autor destas linhas, seguidos de uma entrevista, realizada por Leon Cakof . Publicava-se então o primeiro livro dedicado à obra do cineasta russo. Depois disso, muitos outros vieram, e a bibliografia só faz aumentar.

O texto que o leitor encontrará abaixo foi lido nessa oportunidade. Escrito sob o impacto de uma longa e intensa exposição aos filmes, ele reflete, a meu ver, minha tentativa de discernir, na avalanche de impressões e sensações suscitadas, a singularidade de um grande mestre do cinema mundial.

Nas duas últimas semanas tivemos a oportunidade rara de poder ver boa parte da filmografia de Aleksandr Sokúrov. Pudemos então descobrir o alcance, a riqueza, a complexidade e a grandeza de sua obra, comparável à dos mestres de outras artes, como a pintura, a literatura e a música, e com quem o cineasta dialoga intensamente.

São muitas as portas de entrada para explorar o mundo de Sokúrov; pois creio que se trata, efetivamente de um mundo. Podemos entrar pela via da História e, dentro dela, pelo exercício do poder ou pela contribuição do povo – nesse sentido, seu cinema é altamente político; podemos entrar pela via do furioso amor à terra natal e, então, ganham relevo a natureza, o clima e a paisagem, mas também as paixões e os diferentes estados de espírito que predominam em cada época de sua conturbada história; podemos entrar pela via da Arte, e perceber como Sokúrov recria Mme Bovary, transformando o romance de Flaubert num oratório, como relê Dostoiévsky, levando-nos a rever o sentido do niilismo, como re-compõe a pintura de Caspar Friedrich em Mãe e Filho, como nos faz ouvir Mozart ou Chostakóvitch, em suma, como faz cinema com, e não sobre, a potência artística de outras obras-primas.

Há muitas portas de entrada. Mas a que mais me encanta é a via do Sublime, que encontrei em todos os filmes que vi. Sokúrov pertence à linhagem dos cineastas do Sublime, da qual fazem parte Dreyer, Bresson, Ozu e Tarkovski, mas tem um modo próprio de expressá-lo e de nos fazê-lo sentir. Toda vez que um filme seu começa, sinto-me desorientado, sem saber por onde vou, nem o que está acontecendo ou por acontecer. Essa sensação me obriga a abrir os olhos e os ouvidos, a ficar atento às coisas e aos movimentos, à menor vibração. Aos poucos sou tomado por uma atmosfera que se adensa, e então começo a realizar o que estamos vendo e ouvindo: a dolorosa beleza da vida, em suas múltiplas manifestações.

A beleza da vida está em toda parte: no sono inocente do soldado, no rosto de Miho Shimao que se transfigura como uma paisagem japonesa, na eletrizante regência de Leonard Bernstein, no calor de um quadro no museu de Rotterdam, na dispersão da multidão de um 1o. de Maio. A beleza da vida está nas imagens que se produz do mundo e que o mundo produz. Mas para encontrá-la, isto é para ser tocado por ela, é preciso estabelecer um contato. Para captar, é necessário sintonizar – daí a importância crucial do ritmo e da entonação. A beleza da vida só se revela na precisão de uma sintonia fina. E é dolorosa porque as imagens e os sons nos afetam ferindo, como se nossa alma fosse a nossa própria pele.

Nos filmes de Sokúrov, o que importa não é a ação, mas a afecção, isto é o poder que as imagens (e os sons) têm de afetar, de tocar. Importa também o tempo de exposição do espectador, até que esse poder se atualize e ganhe corpo: a beleza só se dá através da impregnação, da incorporação.

Foi dito muitas vezes que o cinema de Sokúrov é espiritual. É verdade, mas se pudermos acrescentar que aqui o espírito se faz corpo, está no corpo, é corpo. Sokúrov é o cineasta da sublime afecção.

Publicado in Alexander Sokurov: poeta visual / organização Fábio Savino e Pedro França. Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Ministério da Cultura, Zipper Produções, 2013. pp. 51-52.
Nota: fala originalmente proferida em 30 de Outubro de 2002 – Cinesesc – 26a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Imagem no post: detalhe de Hubert Robert – Pintores (década de 1790), Museu Hermitage, São Petersburgo.
Imagem na home: retrato do diretor (reprodução).
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