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A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa revelaram, de modo brutal, nos campos da guerra e da política, a presença dominante da técnica, que Marx já detectara no modo de produzir peculiar da sociedade moderna. A presença da técnica – daquilo que nos permite “ganhar tempo”, fazer, através da ciência e do trabalho, a obra do Tempo.

Ganhar tempo na produção de bens, rivalizando, assim, com a natureza. Mas ganhar tempo, também, na construção de um mundo novo, com Lênin pregando que “o comunismo são os sovietes mais a eletricidade”; e ganhar tempo, ainda, na destruição do velho mundo, do mundo anterior à Revolução Industrial. A Primeira Guerra Mundial não terminara e Karl Kraus já constatava em que consistia a sua “novidade”:

“O que alguns admiram nos aspectos ‘românticos’ da guerra – o heroísmo dos homens, a glória dos guerreiros corajosos e patriotas – foi substituído pelas proezas da técnica e da ciência modernas. O desfecho da guerra será decidido de fato numa espécie de competição entre os laboratórios e fábricas das diversas nações, enquanto ainda se fala dela numa linguagem empregada antigamente para falar da Guerra dos Trinta Anos…”

Tudo se passa então como se a presença dominante, articuladora e transformadora da técnica exigisse um certo modo de produzir no mundo, de construir um mundo e de destruir o mundo anterior. A industrialização, a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa revelaram como se vive, se morre e se gesta o futuro num tempo em que a tônica é “ganhar tempo”. E foi certamente tudo isso que levou Le Corbusier a descobrir, no início dos anos 20, que a casa, a velhíssima habitação do homem, perdera o sentido, precisava ser substituída pela “máquina de morar”.

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Os tempos são outros. Como diria Le Corbusier, o estado de espírito é outro. O arquiteto observa, e escreve no manifesto do “Esprit Nouveau”: “A maquinaria, fato novo na história humana, suscitou um espírito novo. Uma época cria sua arquitetura que é a imagem clara de um sistema de pensar”.

O problema é que tanto o novo estado de coisas quanto o estado de espírito que lhe corresponde, embora sejam reais, não são assim percebidos. Talvez seja a isso que Marx se referia quando apontava o “atraso” da consciência; talvez seja isso que Le Corbusier tem em mente em seu texto sobre a máquina de morar, justamente intitulado “Olhos que não vêem” …

Há um novo estado de coisas suscitando um novo estado de espírito. E, no entanto os homens continuam se concebendo como pessoas, e não como agentes da riqueza abstrata e do trabalho abstrato; continuam indo para a guerra se pensando como heróis; continuam falando dela e do mundo como se vivessem e morressem nos tempos de outrora. E por não verem o novo estado de coisas e o novo estado de espírito, continuam morando como se a casa fosse um bazar oriental onde se acumulam bens, uma arca enfeitada onde se deposita o tesouro, se conserva a riqueza material.

Os olhos não vêem que os tempos incitam a que se more de outra maneira. E é essa nova concepção de moradia que Le Corbusier vai formular. Tomando como modelo não mais o bazar e o castelo, mas o transatlântico, o avião e o automóvel. Vale dizer: tomando como modelo para aquilo que era essencialmente estático, volume no espaço, um meio de transporte.

As implicações são tremendas. A casa deixa de ser um lugar onde se reside, se pára, se fica – em oposição à rua, via de circulação, de correria, de corrida, como indica a palavra grega dromos. A casa deixa de ser um marco, uma referência: nela seu habitante não se fixa mais, pois aqui também está de passagem. A casa não é mais um fim, um ponto de chegada e de partida, mas sim um meio. Em suma: o imóvel torna-se móvel…

A casa, evidentemente, não saiu do lugar. Ainda. Mas o estado de coisas e o estado de espírito dos tempos pede que ela seja habitada como um veículo em movimento. Por isso precisa funcionar, ser funcional, econômica; por isso, tudo o que for supérfluo e decorativo deve ser eliminado. Uma casa prática para um usuário em trânsito, que não quer perder tempo. “É preciso considerar a casa como uma máquina de morar ou como uma ferramenta.” A “casa-instrumento”.

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Os olhos não vêem. Mas os de Le Corbusier vêem. Que a arquitetura precisa dar o salto, que soou a sua hora; que a questão passa pela concepção de moradia; que esta deve tomar como modelo o veículo; que o imóvel tem de se deslocar sem sair do lugar. E o que faz do transatlântico, do avião e do automóvel a expressão modelar do estado de coisas e do estado de espírito modernos e que agora são eles os vetores da harmonia. “No doloroso parto desta época que se forma, afirma-se uma necessidade de harmonia. Que os olhos vejam: esta harmonia esta ai, função do labor regido pela economia e condicionado pela fatalidade da física. Esta harmonia tem razões; não é o efeito dos caprichos, mas de uma construção lógica e coerente com o mundo ambiente. Na ousada transposição dos trabalhos humanos, a natureza está presente, e tanto mais rigorosamente quanto mais difícil era o problema. As criações da técnica maquínica são organismos que tendem à pureza e sofrem as mesmas regras evolutivas que os objetos naturais que suscitam nossa admiração. A harmonia está nas obras que saem da oficina ou da fábrica: não é a Arte, não é a Sistina, nem o Erecteion; são as obras cotidianas de todo um universo que trabalha com consciência, inteligência, precisão, com imaginação, ousadia e rigor.

“Se esquecemos um instante que um transatlântico é um instrumento de transporte e se o olhamos com olhos novos, nos sentiremos diante de uma importante manifestação de temeridade, de disciplina, de harmonia, de beleza calma, nervosa e forte.

“Um arquiteto sério que olha como arquiteto (criador de organismos) encontrará em um transatlântico a liberação das malditas servidões seculares.

“Em vez do indolente respeito às tradições, ele preferirá o respeito às forças da natureza; em vez da pequenez das concepções medíocres, a majestade das soluções que decorrem de um problema bem formulado e são exigidas por este século de grande esforço que acaba de dar um passo de gigante.

“A casa dos terrestres é a expressão de um mundo obsoleto, de pequenas dimensões. O transatlântico é a primeira etapa na realização de um mundo organizado segundo o espírito novo.”

Casa demolida, Emile Nolde, 1893.

Transporte extático

Se a arquitetura deve se inspirar na técnica que produziu veículos e, portanto, porque eles são, antes de tudo, a expressão máxima da harmonia nesta época. Da harmonia que outrora, num momento sublime, se expressou no Partenon. É que os veículos possuem um denominador comum com o templo grego – todos são artefatos mecânicos. O transatlântico, o avião e o automóvel são máquinas de locomoção que nos transportam no mar, no ar e na terra; e o Partenon é “máquina de comover”, ou seja: máquina de mover com, que nos paralisa num transporte extático. Como máquinas, todos são cristalizações de uma intenção motriz, da força do espírito inventivo.

Os olhos de Le Corbusier comparam o templo de Fídias a um Hispano-Suiza, e uma casa a um Delage: “Mostremos portanto o Partenon e o automóvel para que se compreenda que se trata, aqui, em campos diferentes, de dois produtos especiais, um já realizado, o outro, em vias de realização. E agora? Agora resta confrontar nossas casas e nossos palácios com os automóveis. É aqui que dá tudo errado, que nada funciona. É aqui que não temos nossos Partenons”.

Lembremos que o Rolls-Royce vai coroar a sua arquitetura com a metálica efígie de um templo grego. E constatemos que Le Corbusier ambiciona ser o Fídias do seu tempo.

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Le Corbusier viu que a casa se tornara um arcaísmo; era preciso integrar a moradia no universo técnico, na racionalidade tecnológica. Le Corbusier foi quem formulou a passagem, o início da integração – processo cada vez mais acelerado. Os tempos exigiam um espírito novo.

Com efeito, a casa deixou de ser um lar, um foco que irradia energia, uma fonte de luz e calor, deixou de ser habitada por Lares, os deuses domésticos. Secularizada, aparentemente tornou-se instrumento, ferramenta a disposição do homem moderno. Ocorre que a adoção do modelo mecânico implica consequências que ultrapassam a questão do uso e da função. Pois a máquina é muito mais que uma ferramenta, um instrumento; estes são um prolongamento do corpo humano, enquanto aquela o substitui, ocupa o seu lugar, instaurando uma nova relação. Nesse sentido, uma casa-ferramenta pode ou não ser usada, pode ou não funcionar; mas uma casa-veículo curto-circuita a própria casa. Deslocada, posto que em movimento, a casa perdeu suas fundações e começou a desabar, como bem viu o expressionismo alemão. Desabar até tornar-se apenas a imagem nostálgica de algo que ficou irremediavelmente para trás e que o motorista pinta na rabeira do caminhão.

Os interiores foram sendo esvaziados progressivamente e boa parte do que se fazia em casa começou a ser feito fora; o homem moderno passou a almoçar “na cidade” ou na cantina da fábrica, a mandar a roupa para o tintureiro, a divertir-se no cinema e nos bares, a transar “por fora”, na garçonnière, antes da criação do motel; a leitura e o tricô passaram a ser feitos no ônibus, no metrô, durante o trajeto cada vez mais longo entre o trabalho e a residência, antes que o rádio transistor e o walkman introduzissem a música em toda parte, antes que a TV portátil se instalasse nos táxis japoneses. Progressivamente, à medida que o próprio espaço da moradia se contraía assustadoramente, morar foi se resumindo a ter um ponto de apoio onde se restabelece a mercadoria força de trabalho. Cumprida a função exigida pela sociedade, o que sobra para se fazer em casa? O tédio… e as intermináveis brigas do almoço de domingo, ou do Natal. A bem dizer, o homem moderno não mora mais em casa e sim na cidade, como observou uma vez na Folha o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Por isso mesmo, a questão da arquitetura foi se tornando uma questão de urbanismo. O progresso da técnica, da racionalidade tecnológica, se incumbiu de transportar a moradia da casa para a cidade, agora imenso conjunto técnico composto, entre outros equipamentos coletivos, de máquinas de morar, veículos fabricados em série. Até que o próprio avanço do processo, deixando para trás a Segunda Revolução Industrial, transforme a máquina de morar num componente de um circuito eletrônico.

E é aqui que surge Brasília – como concretização de um projeto moderno por excelência.

Tudo começou com uma intenção motriz: a de Juscelino Kubitschek, presidente, homem moderno que sabe que o Brasil perdeu a Primeira Revolução Industrial, a que desenvolveu a termodinâmica, a máquina a vapor, o transatlântico, o trem. E que aspira a integrar o país no novo estado de coisas e no novo estado de espírito, trazendo para cá a Segunda Revolução Industrial, a que desenvolve a energia elétrica e o automóvel.

Tudo começa com uma intenção motriz, expressa no binômio: Energia e Transportes. Em Du mode d’existence des objets techniques, o filósofo Gilbert Simondon explicita a coerência de um projeto desse tipo:

“A descentralização industrial autorizada pelo transporte de energia elétrica a grande distância necessita, como seu correlato, do automóvel como meio de transporte das pessoas para lugares distantes uns dos outros e com altitudes diferentes, o que corresponde à rodovia e não ao trilho. O automóvel e a linha de alta tensão são estruturas técnicas paralelas, sincronizadas […]” .

Tudo começa com uma intenção motriz que leva JK a fazer um gesto, no planalto central do Brasil. Niemeyer vê esse gesto, o movimento dos braços se abrindo, se afastando do corpo, desenhando no ar o que a voz está dizendo: “Aqui!” Niemeyer colhe o gesto, é o desenho de um avião. E assim como o Partenon é para Le Corbusier a materialização do eixo, a cristalização maior do espírito humano, que estabelece, como que naturalmente, a harmonia entre o céu e a terra, Brasília será um avião, um veículo que decola da terra brasileira unindo-a harmoniosamente a esse céu radiante, incomparável, inesquecível.

Mas o país não acompanha esse ímpeto. Há forças pesadas demais comprometendo o êxito da Segunda Revolução Industrial. Há arcaísmo demais. O arcaísmo que fez da modernidade de Brasília um mero cenário para a atuação do que há de mais abjeto no pré-moderno: o favor, a incompetência, a prepotência – a mentalidade de coronel, seja ele civil ou militar, que corrói a vida da cidade e se alimenta de satélites. Por que seria, então, o arquiteto responsabilizado pelo “fracasso” da capital? Há, com certeza, muitas interpretações. Mas não se pode dizer que Niemeyer não tenha dito a sua opinião. Com efeito, é como se ele tivesse dado, diabolicamente, agora, na década de 80; a sua resposta, não às críticas que lhe fazem, mas ao que fizeram com Brasília. Pois, construindo o Memorial JK, Niemeyer subverteu radicalmente o sentido da cidade. Transformou-a num gigantesco mausoléu em memória de um homem e de um sonho de modernização. Em memória de uma intenção motriz. E o fez de modo comovente: na cabeceira da pista ainda está o palácio da Presidência, indicando ao avião a direção da decolagem, da alvorada; mas o veículo está cravado no chão, sua cauda foi enterrada. Em vez de o avião subir ao céu, agora eleva-se, num gesto de adeus, Juscelino Kubitschek.

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Ao final da Primeira Revolução Industrial a casa começa a desabar; ao final da Segunda, é a própria cidade que começa a desaparecer. O futurismo italiano já lançara a palavra de ordem: Chegado romantismo de Veneza! Vamos aterrar e cobrir os canais, transformá-los em ruas trepidando sob o impacto dos automóveis! É o que se podia ver em 1986 na grande exposição futurista que a Fiat organizou num palácio… de Veneza.

As cidades começam a desaparecer. As vias expressas de Moses, os minhocões, os viadutos, as obras públicas monumentais vão rompendo o tecido urbano e provocando o apodrecimento de bairros inteiros. A pressão veicular descentra o centro das cidades, propulsa as populações para longe. As ruas vão cedendo lugar para as autopistas, enquanto arremedos de ruas e praças artificiais vão surgindo nos shopping centers. Morar na cidade? Sim, mas fugindo dela sempre que possível, pelas auto-estradas.

As cidades começam a desaparecer. É que a Segunda Guerra Mundial deixou claro que doravante a produção está indissoluvelmente ligada à destruição. Não mais exclusivamente do mundo anterior, mas também do próprio mundo moderno. A velocidade da técnica em expansão, tornando rapidamente obsoleto todo tipo de produto, mostra que a atividade econômica não repousa mais somente na produção, implica o planejamento e a produção da destruição. É que há um novo estado de coisas, e um novo estado de espírito – estamos na era nuclear, inaugurada com o aniquilamento de Hiroshima e Nagasaki. As cidades começam a desaparecer. Que se pense nas cidades dilaceradas: em Berlim, a esquizofrênica, cidade que encarna a divisão de todos nós, a fissão do mundo, cidade impossível; em Belfast, também dividida; em Beirute sob os escombros da guerra fratricida; na Joanesburgo do apartheid; em Lagos, de onde foram expulsos milhares e milhares, centenas de milhares de nigerianos, condenados literalmente a lugar nenhum; que se pense em Hanói, em Saigon.

Há, no entanto, um outro modo de desaparecer. Como a casa transformada em máquina de morar, a cidade se desloca. Isto é: aparentemente continua no mesmo lugar, embora já não seja mais a mesma. Há o que ocorre com o Rio de Janeiro, por exemplo. Quando Tom Jobim afirma que o Rio acabou, não está fazendo metáfora. O compositor percebe e diz que a cidade não está mais lá, que sua anima, aquilo que a animava, desapareceu, não resistiu à especulação imobiliária, ao gangsterismo político, à poluição, à marginalização galopante da população; não resistiu, ainda, à vampirização da paisagem pela Globo, que faz das praias, dos morros e das florestas um catálogo de imagens kitsch, sujas e gastas, um monte de entulho visual – a ponto de não podermos olhar para um único recanto do Rio sem vê-lo lambuzado pelo melado grosseiro e triunfante da televisão.

Hiroshima antes e após explosão da bomba nuclear. Foto anônima, 1945.

Imagem especular

A cidade se desloca. É o que acontece com Paris. Primeiro construíram autopistas nas margens do Sena; depois a especulação imobiliária se encarregou de expulsar a população pobre, matando a vida dos bairros, que era muito forte; por fim, “renovaram” o centro histórico. O famoso mercado do Halles, que alimentava a cidade, acabou na periferia; destruída a belíssima arquitetura de ferro forjado, abriu-se um buraco gigantesco, deixando exposto o ventre da cidade. Anos depois, surgiu ali um “Forum”, enganosa denominação para um grande centro comercial subterrâneo circundando uma praça “moderna”, onde jovens desempregados e clochards vêm depositar a sua desesperança sob o olho vigilante das câmeras da segurança. Paris, evidentemente, não está mais lá: há um décor que encena para os turistas uma vida parisiense que já se retirou.

As cidades começam a desaparecer. Quando a casa desabou, caiu também a família, embora Le Corbusier desejasse preservá-la; agora, com o fim da polis, desaparece também a política, a cidadania. O espaço do sujeito privado e do sujeito público acabou de acabar. Atentos ao que se passava, os artistas avisaram. No museu de arte moderna de Stuttgart, no centro da capital alemã do automóvel, cidade da Mercedes Benz, Joseph Beuys instalou uma obra. Você entra na sala e vê um espelho retrovisor; à sua frente, na parede, a fotografia do mesmo espelho num carro estacionado. À frente, portanto, o que há para ver é a repetição congelada do mesmo – imagem especular de um movimento estancado, imagem terminal. Você olha pelo espelho retrovisor o que ficou para trás, no percurso – e vê um amontoado de cimento, pedra, madeira, escombros da cidade. Você olha para cima – dois condutores (de energia?) atravessam impávidos toda a sala, sem tocar o chão. Título do trabalho: “Último espaço com introspector”.

Em Koyaanisqatsi, Godfrey Reggio torna visível a aceleração tecnológica e seus efeitos sobre a cidade: o fim da máquina de morar, com as fantásticas explosões dos edifícios modernos; a cidade transformada em circuito impresso, em máquina eletrônica, não mais veículo se movendo no espaço e sim veículo se movendo no tempo, veículo de informação.

Beuys, Reggio – Fellini. Mostrando que uma certa ética, uma certa cultura, uma certa arte naufragam num navio; e que, depois disso, Roma desapareceu: é uma estação de trem superlotada de gente e de imagens publicitárias; e uma estação de televisão. Roma não está mais lá, está “no ar”.

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No campo teórico, que eu saiba, ninguém foi tão longe quanto o arquiteto e urbanista francês Paul Virilio na análise do que está ocorrendo com o advento da Terceira Revolução Industrial, a do desenvolvimento da energia nuclear e da eletrônica. Homem dos espaços, Virilio foi quem anunciou que o espaço se esgotara, quem anunciou a técnica como uma questão de velocidade. Onde o primordial é “ganhar tempo”, onde vence quem chega primeiro.    Por isso L’insécurité du territoire, Vitesse et politique, Esthétique de la disparition, Guerre ET cinéma – logistique de la perception, Défense populaire et luttes écologiques, “La ville surexposée(Change International nº 1) são textos preciosos. Virilio destacou a importância dos aeroportos como bases, plataformas de uma nova maneira de viver; e nos fez ver que a classe dirigente mundial, o jet-set, indica a tendência – não morar numa capital; viver entre Londres e Nova York, entre Tóquio e Frankfurt.

Ora, qual é o limite desse processo? O que acontece quando a velocidade do veículo é tal que, em vez de morar numa casa, numa cidade, num país, o homem moderno esgota o espaço a ponto de não poder mais morar no mundo? Virilio observa, com fascinante precisão, que um homem atingiu esse limite: Howard Hughes.

Milionário, Hughes pôde tomar à dianteira e assumir integralmente a ambição do homem moderno: morar na velocidade máxima, viver o mais rápido possível, ser o primeiro a chegar – no espaço e no tempo. O homem que não usava relógio e se dizia Senhor do Tempo embarcou no veículo. E depois de dar a volta ao mundo em julho de 1938, descobriu que fazia mesmo um movimento circular, que só partia para chegar, só desejava partir para ver chegar o que fica.

“Howard Hughes”, comenta Virilio em Guerra pura,

“é uma figura extraordinária porque sonhou possuir o mundo e terminou provando que alguém pode tornar-se autista precisamente porque o possui inteiramente. Todo mundo pensou que Howard Hughes era louco; em minha opinião, enlouqueceu por causa da sedentariedade. […] Foi o primeiro a fechar o círculo vazio, nos anos 30, com o seu Lockheed Cyclone – observe que não era um Mystère ou um Phantom, era um ciclone ... Ele voltou para o mesmo ponto, Nova York. Howard Hughes era o Lindbergh do fim do mundo, um herói do pós-modernismo. Depois investiu brutalmente na aviação, construiu estúdios de cinema. Esteve metido em tudo o que apareceu naquele tempo e que se relacionava com a velocidade, o avião e o cinema. Ele tentou gozar sua onipresença no mundo. Primeiro, viveu tendo vários apartamentos no mundo inteiro, todos decorados do mesmo modo. Todo dia serviam-lhe a mesma refeição, traziam-lhe o mesmo jornal nas mesmas horas, levando em conta as diferenças de fusos horários. Então essa situação ficou insuportável e ele terminou como um monge tecnológico no deserto de Las Vegas, sem sair da cama. Passou os últimos quinze anos de sua vida fechado na torre de um hotel, vendo filmes, sempre os mesmos, especialmente um velho filme americano sobre a vida de homens fechados na ‘Ice Station Zebra’ no pólo norte. Ele o viu 164 vezes. Lembro-me desse número, pois mostra que, para ele, a inércia tinha se tornado não só uma realidade física (estava realmente entrevado), mas também um objeto de fascínio: nunca parava de ver um filme que representava exatamente aquela mesma inércia numa cidade polar, uma cidade de pesquisa científica, sempre comendo os mesmos pratos, cercada pelos mesmos carros, Chevrolets, que não podiam ser mais banais [ … ].”

O que paralisou Howard Hughes? O que fez o habitante do tempo, o Senhor do Tempo, engatar no ponto-morto? Ao que tudo indica, Hughes descobriu, no limite da velocidade, que dentro da máquina, fosse ela o avião ou o cinema, havia um veículo parado – ele próprio – enquanto o outro se movia. Como Le Corbusier, Hughes sabia que a máquina era uma projeção no espaço, uma cristalização do dinamismo do espírito, a materialização de um fenômeno mental, um certo estado de coisas e um certo estado de espírito. Mas ao contrário de Le Corbusier, Hughes não queria se adaptar aos tempos, queria estar à frente deles. Se a máquina era uma projeção que por sua vez o projetava, tudo era uma questão de tempo – da projeção humana, da projeção mecânica. Como se assenhorear do tempo dessas duas projeções? Hughes descobriu que havia dois veículos, dois projetores: ele próprio e o projetor de cinema. Como articular seus movimentos? Como morar no tempo da projeção? Como habitar o que há entre um fotograma e outro, entre uma imagem mental e outra, entre um estado e outro, como habitar o ilocalizável? O movimento mecânico do projetor cinematográfico ele até que podia controlar e, no limite, desligar. Mas e o outro? E a relação entre os dois? Hughes então se imobilizou, se enterrou na impossibilidade de sua missão. Ele queria pilotar o Tempo, e isso era inatingível.

* * *

Não há mais espaço onde morar. Não adianta querer voltar ao lar, como sugere Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, nem tentar preservar o espaço moderno transformando-o num mural-espetáculo para automobilistas. Não adianta ter saudades. O advento da Terceira Revolução Industrial nos precipitou no tempo. Finalmente. A bomba nuclear fissurou a unidade última da matéria; a eletrônica movimenta informações. Entramos no primado do imaterial. A ciência e a técnica nos conclamam a descobrir o tempo: o tempo da técnica, tempo da evolução que flui entre um estado de coisas e outro, e por dentro deles, que concretiza as três revoluções, tempo tecnológico. Nos conclamam também a redescobrir o tempo: o tempo propriamente dito, o de Proust e Bergson, o tempo da evolução criadora, da energia espiritual que flui entre um estado de espírito e outro, e por dentro deles, que se manifesta em tomadas de consciência.

Não há mais espaço onde morar. Perdemos a última referência espacial. Entramos no tempo. O que pode ser terrível, a experiência do buraco negro vivida por Hughes, que de certo modo já é oferecida a todos como tempo dos meios, da mídia, tempo global que, instaurando o ponto morto, nos instala na projeção, nos faz buscar intensamente a nossa inalcançável imagem “verdadeira”.

Entrar no tempo, porém, não é uma experiência necessariamente niilista. Virilio qualifica Hughes de monge tecnológico e o compara aos anacoretas. Teria sido muito mais interessante se o tivesse comparado ao lama tibetano. Como Hughes, este também se imobiliza e tem uma experiência-limite do espaço e do tempo. Como Hughes, este também se vivencia como um veículo – mas não veículo de projeção, e sim de meditação. É a prática dos três Yanas: Hinayana, veículo do método; Mahayana, veículo do espaço; Vadjrayana, veículo da energia direta. Meditando, o lama descobre que somos um veículo do tempo e não um veículo no tempo. Iluminação.

Publicado no “Folhetim” nº 555, Folha de S. Paulo, 25 de setembro de 1987.
Imagem na home e início do post: croqui da Casa Curutchet, único projeto individual de Le Corbusier na América Latina, concluída em 1954, na Argentina.

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