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Palestra proferida em função do lançamento de número da Revista MultiCiência.

Considerando o que foi dito pelo Joly e pelo Iran eu vou fazer só uma espécie de provocação de uma questão que me perturba, e que é o paradoxo no qual estamos vivendo, com relação à questão do futuro dos recursos. Em poucas palavras, o paradoxo é o seguinte: temos uma erosão da biodiversidade e dos recursos numa velocidade espantosa porque, no caso da biodiversidade, por exemplo, trata-se de uma erosão exponencial. Então, por um lado, estamos vendo que os recursos estão desaparecendo, como foi mencionado pelo Joly, antes mesmo que a gente os conheça; por esse lado, nossa visão só pode ser muito pessimista. Mas, por outro lado, parece que estamos numa época em que não há preocupação nenhuma com relação a esse desaparecimento – pois se desde o Clube de Roma, isto é desde o começo dos anos 70, passou-se a achar que os recursos não são infinitos, são limitados, parece, no entanto, que a partir da informação digital e genética esse finito é ilimitado. Nos dizem que, através da biotecnologia, da nanotecnologia e da informática, vamos poder fazer um número ilimitado de combinações e recombinações a partir de um número finito de elementos. Assim, na perspectiva dessas novas tecnologias de ponta, não haveria escassez de recursos…

É claro que estou trazendo esse paradoxo como uma provocação. Mas o fato é que muita gente não está nem aí para o desaparecimento dos recursos. E como são eles que, de certo modo, expressam a tendência dominante na ciência e na tecnologia, e na aliança entre tecnociência e capital, eu acho que aqueles que estão arrancando cabelo com a perda dos recursos vão continuar arrancando cabelo em vão. Consideremos, por exemplo, a década de 80, quando ficou patente o desaparecimento da biodiversidade (inclusive quando essa própria noção de biodiversidade saiu do âmbito restrito dos especialistas, em que era chamada de “diversidade biológica”, pois o termo biodiversidade nem existia, até que, a partir de 1986 ela se tornou uma questão política, ambiental, econômica, etc): quando ficou patente que a biodiversidade estava desaparecendo nessa escala exponencial, o que fizeram os países que dão as cartas? Decidiram que em vez de deter o desaparecimento, de sustar a erosão, iam constituir bancos de recursos genéticos ex situ , ou seja, fora dos ambientes em que se encontravam originalmente e onde estão desaparecendo, para se garantir, não os recursos naturais, mas a informação dos recursos naturais! A própria linguagem denota a transformação, quando verificamos como a terminologia empregada evoluiu dos anos 80 em diante – falava-se de recursos naturais, depois, de recursos biológicos, e agora se fala de recursos genéticos, o que indica a passagem para a ordem molecular, a ordem da informação. Portanto, em vez de se tentar segurar o processo, o que se procurou fazer foi: vamos garantir o máximo de informação que pudermos coletar nos bancos ex situ , e vamos nos apropriar desses recursos para posteriores investigações e recombinações. Isso não se deu apenas com os recursos genéticos de plantas, animais e microorganismos, mas também, paralelamente ao Projeto do Genoma Humano, com o Projeto Diversidade do Genoma Humano, que, ao que parece, foi posteriormente extinto, por suscitar muitos protestos e reações negativas em diferentes partes do mundo. A lógica que regia esse projeto, com relação aos povos, era a mesma que se aplicara com relação à biodiversidade: já que os povos tradicionais, “primitivos”, do mundo vão desaparecer, vamos fazer a coleta de seu patrimônio genético antes que desapareçam, para posteriores utilizações. A gente não sabe ainda – e na década de 80 se sabia menos que agora – para que serve essa informação genética; mas sabemos que talvez possamos usá-la algum dia, de alguma maneira; então vamos fazer essa coleta do patrimônio genético dos yanomami, dos xavante, dos wai-wai, enfim, todos os povos tradicionais do mundo. Acho essa lógica muito interessante porque ela encarna de certa maneira esse paradoxo com relação ao futuro dos recursos: sabe-se, por um lado, que de certo modo os recursos são finitos; mas sabe-se, por outro lado, que se pode considerar que o mundo esta aí para ser apropriado no plano informacional, ou seja, no plano da informação genética e da informação digital; nesse plano micro, o mundo está aí para ser conquistado.

Em sua intervenção, o Iran assinalou o caráter finito de um recurso como petróleo e o caráter insustentável da civilização em que vivemos; mencionou, também, que se todo o mundo tivesse o nível de vida dos americanos, os recursos já tinham se esgotado há muito tempo e que, portanto, o planeta não pode perseguir o modelo americano. Entretanto, quase nada é feito para que se pense a possibilidade de um outro modelo. Um exemplo disso é dado, por exemplo, pelos organismos multilaterais que cuidam dos recursos fitogenéticos como a FAO, que é um organismo da ONU para cuidar da questão dos recursos de alimentos. No âmbito da FAO sabe-se que os povos indígenas do mundo – que estão desaparecendo –, são os principais produtores de biodiversidade: enquanto nós erodimos a biodiversidade, esses povos são produtores e conservadores de biodiversidade. Mas se a gente for examinar, no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (que também é um organismo multilateral) e no âmbito da FAO como está a proteção dos direitos dos povos indígenas, não só com relação às suas terras, mas com relação às suas culturas e seu conhecimento, e se a gente examinar, no âmbito desses organismos multilaterais, como a biotecnologia é introduzida para transformar o recurso em biomercado, a gente vai perceber que existem duas velocidades: a proteção dos direitos de quem produz e preserva a biodiversidade vai em marcha lenta – o tempo inteiro todo mundo diz que é preciso que os povos indígenas possam ter condições de proteger os recursos que eles querem e sabem proteger, mas isso é sempre dito e nunca feito. Por outro lado, a biotecnologia, que se apropria e monopoliza o recurso, mas erode o recurso que consome, essa, vai muito bem, obrigado, no âmbito da FAO e da Convenção sobre Diversidade Biológica: de conferência em conferência, de reunião em reunião, a biotecnologia intensifica cada vez mais a sua implantação. Há uma dupla velocidade, que faz com que o discurso e a prática sejam expressos de uma maneira esquizofrênica. Por isso, numa perspectiva de longo prazo, não acredito que a sustentabilidade esteja à vista, com relação aos recursos genéticos.

A intervenção do prof. Iran me lembrou uma passagem de Critical Path , um livro do Richard Buckminster-Fuller dos anos 80, no qual ele, diante da perspectiva de limitação dos recursos do petróleo, e para mostrar a insustentabilidade do padrão de vida que os americanos levam, resolveu calcular quanto custaria efetivamente um galão de petróleo. Chamou, então, o grande geólogo François de Chadenèdes e pediu que ele fizesse o cálculo, considerando o tempo e a energia cósmica necessários à produção. Chadenèdes chegou à conclusão que se a gente fosse transformar esses dois fatores em dinheiro, um galão de petróleo iria custar um milhão de dólares! Buckminster-Fuller fez então as contas e pensou o seguinte: se a gente calcular as atividades da sociedade americana nessa perspectiva, cerca de 90% delas não são produtivas, mas sim improdutivas. Li este texto há mais ou menos uns sete ou oito anos, e venho toda a semana de São Paulo para Unicamp. Toda semana sei que queimo centenas de milhares de dólares para vir dar aula. Acho que só essa informação já é suficiente para a gente pensar a insustentabilidade da nossa maneira de viver de um ponto de vista outro que não este com o qual estamos acostumados.

O interesse da provocação consiste ainda em refletir sobre a condição não-moderna da vida dos povos tradicionais, para a qual parece que não há retorno. Foi dito aqui que, com o esgotamento dos recursos, talvez até a gente se veja obrigado a retornar a essa condição anterior; mas se voltássemos a ela, talvez descobríssemos que as populações tradicionais (inclusive os povos indígenas do Brasil que a gente insiste em fazer desaparecer), são extremamente sofisticadas na preservação de seus recursos – coisa que a gente não sabe reconhecer. E se a gente perceber isso, veremos a atenção e o cuidado que dedicam ao modo como caminham pela terra – ao invés de deixarem um rastro de destruição, sua passagem pelo mundo é quase imperceptível. Mas ocorre que eles são tão minoritários, e são considerados tão arcaicos, tão pré-modernos, que têm mesmo que desaparecer…

Gostaria de terminar mencionando o seguinte: na passagem da escassez efetiva dos recursos para a abundância dos recursos recombináveis pelas novas tecnologias ocorre um fenômeno muito interessante, através do qual aquilo que não era apropriável passa a ser apropriado pela via dos sistemas de propriedade intelectual. É importante compreender que, numa ponta, à medida que os recursos da vida vão diminuindo, e quanto mais depressa diminuem, mais por outro lado, na outra ponta, os recursos que sobram ou que ainda existem, são apropriados pelos sistemas de propriedade intelectual. O que augura os conflitos do futuro, armado em torno daqueles que vão ter e não vão ter a propriedade desses recursos. Muito obrigado.

Publicado in
Revista MultiCiência, número 2, 2004.

“Em cada volume, a MultiCiência apresentará os resultados da mesa redonda realizada no lançamento do volume anterior. A mesa será sempre composta por especialistas convidados a debater o tema. Apresentaremos, nesta seção, a transcrição do debate de lançamento da revista com imagens do evento”.

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