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“Pintemos apenas o que vimos, ou o que poderíamos ver.”

“(…) um quadro não representa nada, de início só deve representar cores.”

Paul Cézanne a Joachim Gasquet

Amedeo Luciano Lorenzato é um artista singular, no panorama das artes plásticas brasileiras. Praticamente desconhecido fora de Minas Gerais, região onde nasceu e criou sua vasta obra, é porém, um dos nossos melhores pintores do século XX, cuja envergadura deve e precisa ser avaliada, e reconhecida.  Lorenzato é pura pintura – assim o define, com razão, Maria Angélica Melendi, no livro que lhe foi dedicado, publicado em 2011 [1].

[1] Melendi, Maria Angélica. Lorenzato. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011, pp. 9 e ss.

Mas o que vem significar, nesse caso, a expressão pura pintura? Por que nomear o exercício da arte de pintar como o principal substrato da criação, inscrito em seus quadros? A tais perguntas, fica-se tentado a responder que Lorenzato é pura pintura porque o que busca, e alcança, é a pintura pura. O artista costumava dizer que pintava o que via:

“Eu saio de casa, pego o papel, faço desenhos, anoto as cores mais ou menos e depois, tendo os croquis, eu pinto. Eu tenho que ver a paisagem, as coisas. Se não vejo, não pinto.”

(depoimento circuito atelier pp. 30-31)

Simples assim. Contudo, as frases despretensiosas paradoxalmente revelam e ocultam uma operação complexa. Com efeito, se depuramos ao máximo o processo de produção das obras ao longo de quase cinco décadas, se buscamos sua coerência, descobrimos que o que mobiliza Lorenzato é a força de um acontecimento reiterado todos os dias, que o atrai de modo inapelável, no qual se envolve e ao qual se entrega plenamente: o advento da pintura pura através da dedicação incondicional ao ato de pintar.  O advento da pintura pura é muito mais do que a prática de um ofício, ou a expressão da vontade, da intenção e do pensamento de um artista. Para que a pintura pura se dê é preciso que diversos pré-requisitos sejam preenchidos. Antes de tudo, há a exigência de que o olhar se renda ao puro ver, cabalmente, a ponto de impedir que qualquer interferência possa nublá-lo ou comprometê-lo. Toda preocupação, todo compromisso de outra ordem veda o acesso ao acontecimento, o contamina, ou o interrompe e destrói. O puro ver requer exclusividade. Trata-se do que Cézanne chamava de “estudo do motivo”, que ele praticava diariamente em suas andanças, em seu contacto direto com a natureza, e que Lorenzato vai retomar. É preciso impregnar-se de mundo, incorporar-se nele e incorporá-lo; é preciso dissolver-se no campo da visão, ao mesmo tempo em que o objeto desta deixa de ser objeto para tornar-se relação constituinte. Entretanto, por mais necessária que seja a experiência do puro ver, ela não pode, sozinha, permitir o advento da pintura pura. Para tanto, é preciso que o artista, além de talento, tenha o domínio de seu ofício, tanto intelectual quanto praticamente, a fim de recriar a experiência, isto é de a prolongar e fazer existir para e nos olhos de quem contempla o quadro. A pintura pura é, portanto, o puro ver na pintura. O que acontece rarissimamente, em virtude de uma conjunção de fatores que compreendem tanto a qualidade da percepção quanto o talento e a qualidade do entendimento e da fatura do que vem a ser pintar.

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O cineasta Robert Bresson definiu com grande acuidade a operação que está em jogo nessa dupla dimensão da produção de uma imagem pura, ao escrever que ter discernimento é ter precisão na percepção. [2]

[2] in Bresson, Robert. Robert Bresson, Notes sur le cinématographe, NRF, Paris: Gallimard, 1975, p.81.

Ora, é o que acontece no trabalho de Lorenzato: discernimento no ato de ver; e discernimento no ato de pintar.  Durante décadas, ele foi considerado um artista regional, um naif, ou um“primitivo”, muito embora não se reconhecesse como tal e preferisse se auto-qualificar como “atual”. Talvez sua obra tenha sido vista nesses registros porque Lorenzato era autodidata, não se incluía em nenhum ismo, inexistia para o mercado de arte brasileiro e não reivindicava nenhuma escola ou tradição. Sua trajetória deixa evidente que ele foi um autêntico outsider, pintando o que lhe dava na telha, como ele mesmo chegou a escrever no dorso de uma das telas. Coroando a sua marginalidade enquanto artista, contava o fato de Lorenzato ser pobre e de ter exercido diversos ofícios pouco nobres, sobretudo o de pintor de parede. No entanto, o homem e a obra não se conformam aos clichés. Pois na modéstia de sua vida e no compromisso de sua arte reside a grandeza.

No país dos bacharéis e da herança escravocrata, é preciso ser doutor e não trabalhar com as mãos. Lorenzato não tinha título, e era artesão. Mas isso não significava que esse homem de condição simples não pudesse ser complexo, como indivíduo e como artista. Ele não se enquadrava na polarização erudito/popular, tampouco na formulação cunhada por Bené Fonteles para caracterizar um segmento enorme da produção cultural e artística brasileira: “nem erudito nem popular”. Porque Lorenzato é erudito e popular, amalgamando em sua pintura, de modo único, essas duas esferas, com poder de síntese raro, como bem viu Rodrigo Moura. [3]

[3] Moura, Rodrigo. “Atualidade de Lorenzato”. Citado por José Aloise Bahia in “lorenzato: artista moderno”, http://www.germinaliteratura.com.br/2008/arsnova_josealoisebahia_mar08.htm

Como considerar ingênuo ou “primitivo”, um homem que falava cinco línguas por ter nascido em Belo Horizonte e residido em Florença, Roma, Bruxelas, Paris e Hamburgo, por ter viajado boa parte da Europa visitando museus e igrejas, por ter sido trabalhador forçado dos alemães durante a II Guerra? Como desprezar o aprendizado na Real Academia de Arte de Vicenza, em 1925, e, três anos depois, sua “viagem de estudos” Europa afora, com o artista holandês Cornelius Keesman? Como ver nele um homem de pouco conhecimento, se sabemos que dedicava diariamente suas tardes à leitura e que consultava livros de história da arte, entre os quais Vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori italiani, de Giorgio Vasari? Como ignorar que teve um contato estreito com a pintura européia clássica e moderna, que conhecia os modernistas brasileiros, que trocava obras com os artistas mineiros de seu tempo? Como não levar em conta que seu entendimento da pintura era amplíssimo, pois abarcava desde a pintura rupestre até a pixação e o grafite, que ele via como a arte do “futuro muralista”? Como não valorizar um comovente auto-retrato em que Lorenzato se vê como um homem do paleolítico pintando animais em caverna, e outro em que surge dentro de um medalhão florentino da Capella Brancacci? Como desconsiderar que, nos anos 30, participou do restauro dos afrescos de Rafael Sanzio na Villa Farnesina, em Roma, e nos aposentos do Papa, na residência de Castelgandolfo?

Lorenzato não é um pintor primitivista nem primitivo, como observou Maria Amélia Fialho. [4]

[4] Fialho, Maria Amélia. “Amadeu Luciano Lorenzato”. Citada por Melo, Janaína Alves. “Cronologia”. In Lorenzato. Circuito Atelier. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2004, p. 46.

No bom e no mau sentido: sua pintura não procede do mundo e do pensamento mágicos, tampouco é simplista, pouco informada, “intuitiva”. Um comentário seu ilustra, à perfeição, esse misto de grandeza e modéstia, que encontramos tanto no homem quanto no pintor, quando, em entrevista a Cláudia Gianetti e Thomas Nölle, ele diz:

– Eu gosto de Masaccio mais do que de Rafael.

– Masaccio?

– Sim, o Rafael é muito lambido.[5]

[5] Entrevista concedida a Claudia Gianetti e Thomas Nölle, Julho 1988. (transcrição) In Melendi, M. A. op. cit., p. 23.

O comentário tem graça, por mesclar a referência erudita, de connaisseur, com o termo ao mesmo tempo coloquial e técnico. Achar Rafael (que no cânone europeu era considerado o Mestre de todos os Pintores) “muito lambido” denota um à vontade e uma liberdade de juízo estético surpreendentes; mas é preciso lembrar que a expressão lambido costuma ser usada para designar uma obra de arte demasiadamente polida ou exageradamente retocada. Ora, tal juízo procede dentro de uma determinada perspectiva pictórica, é coerente com o entendimento que Lorenzato tem dos pintores que preza (Cimabue, Masaccio, e outros do Primeiro Renascimento, além de Leonardo e Michelangelo), e da pintura que ele próprio pratica. Mais ainda: tal entendimento não é uma idiossincrasia. Com efeito, já em 1667 encontramos uma referência ao gosto de Rafael pela precisão do desenho, “tão zeloso em conservá-lo inteiramente que alguns até acharam que ele pende para o lado da secura, mas a bem da verdade pode-se dizer que tomou o partido do meio termo entre o demasiado macio e o demasiado musculoso, a primeira maneira sendo praticada pela Escola da Lombardia, e a segunda pela de Florença.” [6]

[6] Mignard. Quatrième conférence tenue dans le Cabinet des Tableaux du Roy” em 3 de Setembro de 1667. In Félibien, André. Conférences de l’Académie Royale de Peinture et de Sculpture. Paris: Frédéric Léonard, 1669, p. 46. https://archive.org/stream/gri_conferencesd00feli#page/n5/mode/2up

Assim, segundo Lorenzato, Rafael é “muito lambido”, e segundo Mignard, há quem ache que a ênfase no desenho seria responsável por tornar seca a sua pintura. Mas a aproximação entre os dois juízos estéticos interessa por apontar também para as diferenças entre as opções pictóricas dos pintores da Lombardia e de Florença. Ora, é com os florentinos que Lorenzato aprende a pintar, frequentando as igrejas, estudando os afrescos. Se Masaccio é o seu preferido, é porque a contribuição desse pintor lhe parece fundamental.  Faz-se necessário, aqui, lembrar que é a descoberta da pintura de afrescos que assegura a Lorenzato a efetiva passagem de seu ofício de artesão ao seu trabalho como artista. Na verdade, para ele, e em conformidade com a história da arte, o afresco é “o precursor das artes plásticas”.[7]

[7] Entrevista inédita concedida a Germana Monte-Mór, Solange Pessoa e Ricardo Homen em 1992.

Não é difícil entender a razão do afresco como operador da passagem: como especialista na pintura de ornamentação, ele conhece a fundo as técnicas que permitem a imitação do mármore e da madeira, bem como o preparo das paredes e a feitura das próprias tintas, a realização de estuques, etc; tem, portanto, condições de admirar os afrescos do Quatrocentto, os materiais empregados e sua fatura – os métodos, as soluções, as variações e diferenças de um pintor a outro.[8]

[8] Agradeço ao restaurador André P. Kosierkiewicz pelas preciosas informações técnicas relativas à fatura da pintura de Lorenzato, bem como a indicação dos livros de André Félibien e de Cennini, Cennino. Il Libro dell’Arte. MS., c. 1390. Para este texto foi consultada a tradução francesa: Traité de peinture. Paris: Jules Renouart, 1858.
http://books.google.com.br/books?id=ObFDAAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

Com Masaccio, Lorenzato aprendeque o ponto de partida do pintor é uma observação da natureza em termos de estrutura e perspectiva – em outras palavras, da realidade concreta. Por inaugurar tal ponto de partida, Lionello Venturi comenta que Masaccio foi considerado o primeiro artista cujas figuras tinham realmente os pés no chão.[9]

[9] Venturi, Lionello. Italian Painting The Creators of the Renaissance. Vol. I. Geneva-Paris: Editions Albert Skira, 1950, p. 113.

Além disso, o crítico observa que essa opção contraria a tendência predominante na arte da Idade Média, na qual partia-se de um modelo abstrato, suprido pela tradição, que, para tornar-se obra de arte, devia ser transformado num retrato concreto inspirado pelas emoções místicas vivenciadas pelo artista. E acrescenta:

“A análise científica da experiência ótica que começou em Florença na primeira metade do século XV influenciou todo o aspecto da pintura por muitos séculos – para ser preciso, até cerca de 1900, quando vemos sinais de um revival da arte abstrata. (…) sentiu-se necessidade de reinstaurar o abstrato como uma fonte de inspiração – seja formas abstratas e espaço geométrico, seja o desconhecido, o invisível, o supra-real. Seria isto o revival de uma velha procura de Deus, ou, talvez, o Irracional batendo à porta de nossos corações?”[10]

[10] Idem, p. 11.

A questão levantada por Venturi merece ser ressaltada porque é a fidelidade ao ponto de partida inaugurado por Masaccio que irá determinar a arte de Lorenzato, inclusive em seu possível “anacronismo” enquanto pintor do século XX. Basta ver como surgem a paisagem, a natureza morta, o casario, o pôr-do-sol em suas telas, para se ter certeza de que a observação da natureza rege a estrutura e a perspectiva de sua pintura; o que se confirma pelo modo como recorre aos croquis, que executa durante suas perambulações, e lhe servem como orientação, inclusive para as cores, anotadas em código. Mas isso não é tudo. Com Masaccio, Lorenzato aprende que observar a natureza para estruturar e perspectivar a sua pintura não significa copiá-la, mas sim construir o espaço através dos volumes e de sua disposição em profundidade. Outro ensinamento do pintor florentino: as cores da pintura não devem ser meramente transpostas da natureza, mas sim conquistar a luz natural. E, finalmente, há a adoção da tendência à simplificação geométrica das formas, que em Lorenzato chega a culminar numa espécie de minimalismo da paisagem, tamanha é a redução da figuração.

Porém, não há só Masaccio. Encontramos a marca de outros precursores do Renascimento na maneira de pintar de Lorenzato. Lionello Venturi ressalta que Cimabue, também privilegiando o contato mais próximo com a realidade, se deu conta de que os contrastes de luz e sombra produziam efeitos gráficos de primeira ordem. Por isso, não usa nuances de chiaroscuro para dar uma ilusão de forma sólida, preferindo o jogo de luz e sombra.[11]

[11] Ibidem, pp. 17 e 57.

O mesmo procedimento podemos ver, por exemplo, nos bosques de Lorenzato e, sobretudo, no modo como suas casas se distribuem no espaço e como suas paredes e telhados se expõem, ou não, à luz do sol. Por outro lado, o artista ítalo-brasileiro parece inspirar-se em Duccio, o discípulo de Cimabue, ao organizar o espaço de suas paisagens com as montanhas de Minas e o pôr-do-sol. Uma comparação destas com Via per Emmaus, por exemplo, mostraria que, em ambos os casos, o espaço não é dado como um fato material, mas sugerido por golpes de vista sucessivos e independentes, o que implica em perceber que o espaço se constrói através de quebras de continuidade. Além disso, não há como ignorar o papel da diagonal na composição do espaço de tantas telas de Lorenzato, pois ela parece obedecer aos mesmos princípios que regem toda a leitura das cenas das Storie della Passione e Ressurrezione, de Duccio, mas também da Pietà de Giotto na Capella degli Scrovegni. A respeito dela, escreve L. Venturi:

“Esta composição em profundidade não deve nada à perspectiva, mas é, antes, organizada pela diagonal.”[12]

[12] Ibid., p. 59.

A assimilação por Lorenzato dessas soluções pictóricas é tão intensa, que se fica tentado a atribuir a ele as palavras de Venturi quando escreve a respeito dos afrescos de Giotto:

“(…) figuras e objetos retratados são dispostos em diferentes planos; assim, eles conferem um sentido de massa que existe no espaço, e mesmo que isso implique em perda de poder plástico, eles se movimentam mais livremente e caem em seus respectivos lugares mais harmoniosamente.”[13]

[13] Ibid., p. 63.

Finalmente, há a questão de uma concepção específica do uso das cores. Nesse caso, o procedimento utilizado evoca a maneira de Piero della Francesca, que as emprega como zonas cromáticas, uma cor representando a luz e a outra a sombra. “Esta é uma concepção inteiramente nova – escreve Venturi –; é o princípio básico da forma cromática em pintura. Com Piero a luz contorna e cria forma (…). Toda luz vibra, e a luz natural só é completamente manifesta na pintura quando é dado livre trânsito às suas vibrações, a dança das moléculas.”[14]

[14] Ibid., p. 128.

Assim, a presença das contribuições dos pintores do Renascimento italiano, longe de desmerecer o trabalho de Lorenzato, só faz valorizá-lo. Não só porque fica patente que a sua pintura é resultado de observação e reflexão depuradas, mas também, e principalmente, porque sua apropriação da lição renascentista não se dá no registro da imitação simplória, e sim no de escolhas seletivas, melhor dizendo, de afinidades eletivas cujo entrelaçamento será articulado pela exigência de expressão que se impõe ao artista. Num certo sentido, excetuando o ponto de partida de Masaccio, que Lorenzato evidentemente abraça, todas as outras “influências” podem ser entendidas como recursos pictóricos de que ele lança mão com grande liberdade de decisão. Por outro lado, um exame mais detalhado de algumas obras mostraria que a combinação desses recursos varia e surpreende, a ponto de um mesmo trabalho, por exemplo, poder articular a perspectiva grega e a perspectiva aérea, sem que o conjunto fique comprometido por tal combinação insólita. E o mesmo se dá com os materiais empregados, que são de toda ordem, provenientes do arsenal do pintor e do artesão – Lorenzato, além de fabricar as telas, os afrescos e as tintas tanto pode recorrer à massa de vidraceiro quanto misturar óleo e cera, como Leonardo na Santa Ceia!

De todo modo, vale registrar: talvez seja essa herança italiana clássica que desperta, às vezes, uma sensação paradoxal no espectador, de pressentir, numa favela de Belo Horizonte, ou nas montanhas de Minas, uma impressão indefinível de burgos e cidadelas, uma evocação sutilíssima de colinas da Toscana, como se fragmentos dos fundos dos afrescos renascentistas tivessem se desembaraçado das figuras míticas e religiosas e aflorassem por dentro da cena brasileira, figurando-a como pintura nossa. Com efeito, não se percebe traço de idealização europeizante da paisagem mineira, seja ela natural ou social – a pintura de Lorenzato não é de modo algum nostálgica de um outro espaço-tempo, físico ou metafísico. É que o puro ver do presente se abre na visão de uma realidade concreta sendo modulada por todo o aparato pictórico já visto e assimilado, que fora construído para apreender um outro mundo, mas agora é capaz de transformar a visão do nosso em pintura pura. O mais interessante é que a referência renascentista na pintura de Lorenzato não o torna um artista acadêmico, como se poderia ingenuamente supor. Isso porque a apropriação que ele faz da pintura moderna também é extremamente relevante. Já se mencionou anteriormente sua proximidade com Cézanne, o precursor da pintura moderna, pela fidelidade ao “estudo do motivo”. Também seria válido lembrar o amor que ambos devotam aos grandes mestres, os quais são investigados com muita atenção – no caso de Cézanne mais pelos venezianos do que pelos florentinos. Além disso, ambos conferem ao preparo da tela uma importância enorme: Lorenzato muitas vezes a cobre com um fundo azul ou branco; Cézanne lamenta que os modernos não saibam mais fazer “a alma secreta”, do que está por baixo, como a grisaille em Veronese. Finalmente, cabe assinalar um certo parentesco de Lorenzato com o artista francês em torno da questão da cor. Pois muito embora pintem de modo muito diverso, ambos privilegiam a cor ao desenho, ambos só pintam pela manhã (a hora mais bela, aquela em que os objetos parecem mais graciosos – diz Bourdon[15]), e ambos modelam pela cor – não há sombreado, a cor faz o contorno.

[15] Bourdon. Septième Conférence tenue dans l’Académie Royale. In Félibien, A. op. cit., p.112.

Vejamos as implicações desse parti pris em favor da cor, através dos comentários dos pintores R. P. Rivière e J. F. Schnerb, que visitaram Cézanne em seu atelier, um ano antes de sua morte. “Não sou um valorista”, dizia Cézanne, e ele realmente modelava mais através da cor do que do valor. Para ele, as oposições de luz e sombra eram antes de tudo oposições de tons que a observação e o raciocínio permitem ao pintor reproduzir. As partes atingidas diretamente pela luz e as que só são iluminadas por reflexo se colorem diferentemente, mas segundo uma lei uniforme seja qual for seu tom local. É pela oposição dos tons quentes e frios que as cores de que o pintor dispõe, sem qualidade luminosa absoluta nelas mesmas, chegam a representar a luz e a sombra. A cor mais clara da paleta, o branco, por exemplo, tornar-se-á cor de sombra se o pintor puder lhe opor um tom mais luminoso. Por isso Cézanne gostava de repetir: “Não fazemos a luz, a reproduzimos”. Apenas reproduzimos seus efeitos colorantes.”[16]

[16] Rivière, R.P. & Schnerb, J.F. L’atelier de Cézanne. Envois. Paris: L’Echoppe, 1991, s/n.

Ora, essa opção resulta numa pintura que tem na “sensação colorida”, muito mais do que na forma, o seu ponto central. Além disso, tal concepção do cromatismo transforma a modelagem numa modulação. “O “colorismo” – escreve Gilles Deleuze – são cores que entram em relação (como em qualquer pintura digna desse nome), mas não só; é a cor que é descoberta como a relação variável, a relação diferencial da qual todo o resto depende. A fórmula dos coloristas é: se você levar a cor até suas relações internas puras (quente-frio, expansão-contração), então terá tudo. Se a cor é perfeita, isto é as relações da cor desenvolvidas por elas mesmas, você tem tudo, a forma e o fundo, a luz e a sombra, o claro e o escuro.”[17]

[17] Deleuze, Gilles. Francis Bacon Logique de la sensation I. la Vue le Texte. Paris: Editions de la Différence.1981, p. 89.

O tratamento dado às cores por Lorenzato faz dele um autêntico colorista e não é à toa que faz as suas tintas, usando pigmento preto, verde, amarelo, azul e o branco (cimento ou bicarbonato), corantes Xadrez e óleo de linhaça (e oco, como os pintores florentinos). Já se observou que ele é pintor de poucas cores, por privilegiar os diferentes tons de azul, ocre e verde, as cores do céu e da terra, as cores da paisagem. É inegável que suas telas despertam no espectador, antes de tudo, a “sensação colorida”, criada pelo primado das cores, que rege o concerto de todos os outros componentes fundamentais da pintura – a luz, a composição, a proporção, a expressão e a harmonia do conjunto. Assim, é a “sensação colorida” que nos abre o mundo de Lorenzato.  O galerista Manoel Macedo, um dos maiores colecionadores de obras do artista e que com elas convive há mais de trinta anos, chama a atenção para o “silêncio” que existe nesses quadros. De fato, não há neles narratividade alguma, apenas uma espécie de “serenidade passional” que se declara na pura contemplação. Como se a linguagem se calasse, tornando-se desnecessária, porque a “sensação colorida” faz ver, afeta o espectador, e se consuma no olhar, levando-o a querer ver mais.

Last, but not least, há a ressonância com Van Gogh. É claro que Lorenzato conhece os impressionistas, Picasso, Matisse, Carrà e muitos outros. Porém, nenhum pintor moderno lhe é tão próximo quanto o holandês, e não é só porque ele o homenageia, pintando girassóis. Ocorre que Lorenzato usa pentes como Van Gogh usa o pincel… e a cor, sulcada, espessa, vibra.  A descoberta da utilização do pente se deu por acaso; contudo, parece ser uma decorrência que coroa a passagem definitiva do artesão ao pintor, pois é com ele que adquire sua forma própria de expressão. Lorenzato chegou a ter uma coleção de pentes, comprados em Paris, durante a juventude:

“Eu era pintor, especialista em decoração com estambres marmorizados, fingimento de mármore e madeira; se fazia o fundo de óleo, depois as veias em amarelo, vermelho, preto, e depois com o pente a gente arrematava. (…) Depois voltei para Belo Horizonte e já não usava mais esse negócio. Um dia tive a ideia, forrei um papelão e depois com o pente comecei a mexer e deu um troço qualquer. Isso foi mais ou menos há uns dez anos atrás. Assim eu então comecei. (…) Primeiro eu pinto, espalho a tinta de diversas cores, e depois com o pente eu vou fundindo. Uso o pincel para espalhar a tinta e o pente para fundir as cores.”[18]

[18] Lorenzato. Depoimento. In Lorenzato. Circuito Atelier, op. cit., pp. 31-32.

“É uma característica minha. Sou o único pintor no mundo que pinta assim.”[19]

[19] Entrevista inédita com Germana Monte-Mór e Solange Pessoa.

O escultor Amílcar de Castro, que estimava o trabalho do artista, costumava dizer em tom carinhoso, que além de pintar muito bem, Lorenzato penteava a pintura. O fato é que o manuseio do pente confere movimento e vibração ao todo e às partes, bem como ao fundo e às figuras. Que se atente, por exemplo, para a bela variedade de céus povoando as telas. Neles o ar circula, ora levando-os para longe, para o fundo, criando distância, ora interpondo-se entre os diversos planos de montanhas, ora preenchendo o espaço entre estes e as árvores que ocupam o primeiro plano, vibrando diferentemente aqui, ali, acolá. Tudo isso acontece porque o movimento do pente não é uniforme nem repetitivo, mas se encontra em variação contínua, conforme Lorenzato passa do céu às montanhas, destas às árvores, às casas, às pessoas, aos caminhos, às flores. Pintando com o pente, de modo incisivo ou delicado, em movimento contínuo ou interrompido, circular ou retilíneo, o artista insufla uma espécie de élan vital a percorrer toda a superfície dos quadros, oxigenando-a.  Lorenzato usa o pente como Van Gogh usava o pincel. Mas o que os aproxima, também os separa, pois o pente é vetor de respiração, enquanto o pincel operador de inervação; assim, o gesto pictórico que conduz a serenidade apaixonada do primeiro contrasta com o espasmo do pincel convulsionado do segundo. Do pente aplicado com firmeza e precisão emerge, em Lorenzato, a contemplação amorosa de uma natureza apaziguada, ao mesmo tempo próxima e distante; da pincelada patética, enervada, de Van Gogh, brota a visão atormentada de uma “natureza vista pura e nua, tal como se revela quando sabemos chegar bem perto dela”, no entender de Antonin Artaud.[20]

[20] Artaud, Antonin. Van Gogh Le suicidé de la société. Coll. L’Imaginaire. Paris: Gallimard, 2001, p. 66.

Para concluir, vale a pena sublinhar o paralelismo Volpi-Lorenzato, tantos são os pontos comuns em termos de trajetória existencial e artística. Ambos são ítalo-brasileiros: o primeiro, italiano nato e paulistano de criação; o segundo, belo-horizontino nato que viveu um longo período na Itália. Ambos são filhos de imigrantes que se tornaram artistas operários, exercendo diversos ofícios e, principalmente, a pintura de decoração. Ambos são autodidatas, amadureceram como pintores na idade madura, fizeram sua primeira exposição depois dos cinquenta anos. Ambos preparavam a tela e o chassi, faziam suas próprias tintas (Lorenzato chega a fazer até os pincéis). Ambos foram fortemente influenciados pela pintura do Primeiro Renascimento – que se pense em Volpi visitando dezoito vezes os afrescos de Giotto em Pádua ou, ainda, no modo como ele organiza o espaço. Ambos foram artistas modernos, mas considerados primitivos – bastaria lembrar o juízo de Frank Stella sobre Volpi; em suma, são ao mesmo tempo eruditos e populares. Por fim, ambos são coloristas. Como disse Volpi:

“Você bota a primeira cor. Olha. Bota a segunda. Olha de novo. Se está certo, você percebe. Se está errado, você também percebe, apaga e começa de novo.”[21]

[21] Hannud, Giancarlo. “Alfredo Volpi”, in Arte moderna no Brasil Uma história do modernismo na Pinacoteca de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2013, pp. 104 a 110.

Tudo isso poderia ter conduzido a uma espécie de convergência dos caminhos dos dois pintores. Mas não é o caso. Em sua leitura sobre a obra de Volpi, Rodrigo Naves sinaliza a presença de uma modernidade ambígua, marcada por um certo arcaísmo atuante em mais de um aspecto, inclusive na ressonância com a fatura de afrescos. No entender do crítico, essa complexidade problemática da construção formal impediria a afirmação resoluta do moderno, tornando sua arte um emblema da “forma difícil”, que emerge tanto na construção dos quadros quanto num cromatismo muito particular, expresso pelas tênues variações tonais da têmpera, o caráter hesitante das cores, a feição esmaecida das telas, aliado às formas gastas e à memória cansada. Nesse sentido, ainda que Volpi seja “o primeiro grande artista plástico moderno brasileiro a obter dimensão pública”[22], sua obra careceria do principal pressuposto moderno, a reivindicação da autonomia da arte e do trabalho do artista. Portanto, Volpi expressaria a nossa modernidade possível, ainda que sua obra seja considerada por muitos como a abertura do caminho para a abstração.

[22] Naves, Rodrigo. A forma difícil Ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Editora Ática, 2a. ed., 1997, p. 194.

Não cabe aqui se perguntar se Lorenzato é ou não plenamente moderno, apenas sublinhar que seu compromisso com a arte o leva a passar ao largo das periodizações e da oposição clássico/moderno, para inscrever-se na linhagem dos precursores que inventaram e reinventaram a pintura: o homem do paleolítico que pinta a caverna,; Masaccio, o precursor do Renascimento; Cézanne, o precursor da arte moderna… à espera do muralista do futuro. Por que se interessa tanto pelos precursores? Em meu entender porque para ele a pura pintura é, foi e será, sempre, a gestação e o advento da pintura pura do que se vê e do que se poderia ver. Num certo sentido, a fidelidade aos precursores revela um comprometimento com a dimensão paradoxal da arte, posto que temporal e atemporal, histórica e trans-histórica. O precursor é aquele que leva em conta o passado, o presente e o devir da pintura.  Nem sempre isso é entendido. Esta é a segunda exposição individual de Lorenzato em São Paulo. A primeira ocorreu em 1981, organizada por Roberto Rugiero na Galeria Brasiliana.[23]

[23] Lorenzato 25 óleos. Folder da exposição na Galeria Brasiliana, de 28 de Setembro a 16 de Outubro de 1981.

Na ocasião, apesar da alta qualidade da mostra, o galerista vendeu três quadros. O que aconteceu? Muito provavelmente algo análogo ao fenômeno a que se refere Proust quando escreve:

“O motivo de que uma obra genial rara vez conquiste a admiração imediata é que o seu autor é extraordinário e poucas pessoas com ele se parecem. Há de ser a sua própria obra que, fecundando os poucos espíritos capazes de compreendê-la, os fará crescer e multiplicar-se. Foram os próprios quartetos de Beethoven (…) que levaram cinquenta anos para dar vida e número ao público dos quartetos de Beethoven, realizando desse modo, como todas as grandes obras, um progresso, senão no valor dos artistas, pelo menos na sociedade dos espíritos, largamente constituída hoje pelo que era impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá-la. Isso a que se chama posteridade é a posteridade da obra. É preciso que a obra (…) crie ela própria a sua posteridade. E se a obra se conservasse de reserva e só a posteridade a conhecesse, esta já não seria para a referida obra a posteridade verdadeira, mas uma assembleia de contemporâneos que simplesmente viveu cinquenta anos mais tarde. Cumpre, pois, que o artista (…) se quiser que a sua obra possa seguir seu caminho, a lance onde haja bastante profundidade, em pleno e remoto futuro.”[24]

[24] À sombra das raparigas em flor. Porto Alegre: Ed. Globo, 2a. ed,, 2a. impr., 1960, p. 82. Trad. de Mário Quintana.
Texto para o catálogo da exposição Lorenzato, a grandeza da modéstia, realizada na Galeria Estação, São Paulo, de 12 de março a 11 de maio de 2014, com curadoria do autor.
Ref. bibliográfica:
SANTOS, Laymert G. Lorenzato, a grandeza da modéstia / curadoria Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: Galeria Estação, 2014.
Imagens: João Liberato

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