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Não se pode pensar o papel dos meios de comunicação no Brasil exatamente com as mesmas categorias com que os teóricos dos países industrializados pensam o problema. Por uma razão muito simples: porque elas não se aplicam aqui da mesma maneira. Nos Estados Unidos ou na Europa, o ponto de partida é uma pergunta dupla: por um lado, o que os meios produzem para a massa de indivíduos despersonalizados, anônimos, intercambiáveis, descodificados, essa categoria denominada “trabalhador livre”; por outro lado, o que o trabalhador livre “produz” a partir dessa produção, ou seja, o que “fabrica” com os enunciados e as imagens que o bombardeiam o tempo todo. O terreno em que a reflexão se move sempre coloca como requisito básico o trabalhador livre, que se constitui num dos dois elementos fundamentais do capitalismo, o outro sendo, evidentemente, o capital.

Dizer trabalhador livre já é dizer o fundamental para a atuação dos meios. Pois, como afirma o teórico alemão Hans Magnus Enzensberger, a industrialização do espírito supõe quatro condições:

1) um pré-requisito filosófico: o racionalismo

2) um pré-requisito político: a proclamação dos direitos humanos, particularmente a igualdade e a liberdade

3) um pré-requisito econômico: a acumulação de capital

4) um pré-requisito tecnológico: a industrialização

Portanto, para que os meios possam atuar é preciso que exista o trabalhador livre, esse indivíduo despersonalizado, esse indivíduo que do ponto de vista do sistema capitalista só conta como força de trabalho, embora o indivíduo diga o tempo todo: eu, eu, eu. Tudo se passa como se o capitalismo despersonalizasse por um lado e simultaneamente propusesse modelos forjados a partir da igualdade abstrata para preencher o buraco, a inexistência de pessoas, para que o sujeito, semiotizado pelos modelos, possa dizer: “o meu eu”.

É nesse processo que trabalham os meios de comunicação. Os meios constituem uma espécie de muro de linguagem que propõe ininterruptamente modelos e imagens nas quais o receptor possa se conformar – imagens de unidade, imagens de racionalidade, imagens de legitimidade, imagens de justiça, imagens de beleza, imagens de cientificidade. Os meios de comunicação falam pelos e para os indivíduos.

Nos países capitalistas avançados esse processo de individuação – despersonalização e repersonalização – é bastante sofisticado, e dele o Guattari falou infinitamente melhor do que eu. Mas parece-me que no Brasil as coisas não se dão exatamente da mesma maneira. Por aqui um capitalismo tremendamente moderno se conjuga com formas pré-capitalistas e até anticapitalistas que o próprio movimento do modo de produção se encarrega de conservar, de atualizar e de criar. Nada melhor para exemplificar o que é o Brasil que essas máquinas automáticas públicas para tirar fotografia. Em Paris ou Nova York, tais máquinas se encontram na esquina ou dentro de um centro comercial. O usuário chega, pega uma moeda do país, alimenta o dispositivo, faz a pose, espera, e vai embora depois que a máquina cuspiu suas fotos. No Brasil, uma senhora toma conta da cabine e faz o papel de fotógrafo: troca o dinheiro pela moedinha de plástico, acerta a banqueta, corrige o ângulo do rosto, fecha a cortina; e depois, quando a série está pronta, vai buscar sua tesourinha e recortar cuidadosamente cada foto – para colocá-Ias num invólucro de plástico…

Essa conjunção de formas supermodernas com arcaísmos incríveis está em toda parte nas grandes cidades brasileiras. Mas ela não está só fora, está sobretudo dentro da cabeça. O comportamento e a linguagem revelam isso muito bem. Penso, por exemplo, num enunciado tão corrente na vida brasileira e que é o famoso “Você sabe com quem está falando?”. A análise que Roberto da Matta faz desta frase, em seu livro Carnavais, malandros e heróis, mostra o quanto a noção de indivíduo é pejorativa no Brasil. Pois o “Você sabe com quem está falando?” revela o inverso do que diz a frase americana “Quem você pensa que é?” ou do enunciado francês “Por quem você se toma?”. Nos dois últimos casos a pergunta indica que a regra fundamental é a igualdade, que todos têm os mesmos direitos, e que portanto aquele que pensa que é superior deve abdicar de sua pretensão. No caso de “Você sabe com quem está falando?” dá-se o contrário: a frase coloca quem a usa numa posição superior, instaurando imediatamente a hierarquia e a desigualdade social. É que, no Brasil, a pessoa parece ser mais importante que o indivíduo, pois ser indivíduo é um estigma, é ser anônimo, é ser um “Zé-ninguém”.

A frase “Você sabe com quem está falando?” permite precisamente a passagem do indivíduo a pessoa. Isto é, do terreno da impessoalidade das relações capitalistas para o sistema hierárquico e autoritário das relações pessoais, para o território do favor, da consideração, do respeito, do prestígio, com seus figurões, seus medalhões, seus padrinhos, seus pistolões, etc. Nesse sentido, o que torna alguém pessoa, o que lhe dá identidade social não é apenas o critério econômico, mas também e sobretudo as relações pessoais. São pessoas aqueles que contam; como revela o dito: “Quem tem sapato se conhece”. E entre quem se conhece, não se pergunta “Você sabe com quem está falando?” – pois todo mundo já conhece o seu lugar.

Assim, no Brasil convivem e se conjugam num mesmo drama dois mundos: o mundo de pessoas, onde todos são “gente”, de uma ou outra maneira acima da lei, mundo das relações sociais personalizadas que possui um código altamente elaborado. E quem desconhece esse código corre o risco de ser inferiorizado, colocado no seu “devido lugar” ao receber pela frente um “Você sabe com quem está falando?”. Por outro lado, há o mundo de indivíduos, impessoal, regido pela lei igualitária e universalizante. Como afirma Roberto da Matta: “as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas”.

A hipótese de trabalho que eu gostaria de discutir aqui é a seguinte: parece que, no Brasil, os meios de comunicação não trabalham exatamente e com os mesmos pressupostos que seus congêneres dos países capitalistas avançados. Isto é: não trabalham com a hipótese de uma sociedade onde predominam as noções de igualdade, de universalidade, de indivíduo simultaneamente despersonalizado e a ser repersonalizado, a ser modelizado. Aqui, do ponto de vista dos meios de comunicação, não se trata de modelizar porque nem sequer se reconhece que o capitalismo trabalha com a despersonalização-repersonalização. Os meios não forjam modelos para que os indivíduos possam dizer “o meu eu”, simplesmente porque o indivíduo não conta.

Os meios de comunicação falam do mundo das pessoas, que transformam até em superpessoas. No jornal, no rádio, na televisão, nas revistas, o indivíduo só aparece no registro policial, quando se personaliza através da violência. Ou então no carnaval, quando se torna personagem de um fato da história nacional. Ou ainda no misticismo ou no futebol, quando se destaca por seus dons ou poderes superiores. Aqui, os meios apenas pretendem exibir e reforçar o mundo das pessoas, espetacularizá-lo, torná-lo ainda mais brilhante e glamuroso, aumentar a separação. Ou, então, nos programas ditos “populares”, do estilo Povo na TV ou Gil Gomes, denunciar e reprimir por antecipação quem quiser infringir o código social, tentar passar na marra de indivíduo a pessoa.

Nem por isso a modelização deixa de operar. Ao contrário, parece que o impacto dos meios, e particularmente da TV, é maior ainda. A empatia parece ser muito mais forte. Porque as pessoas se reconhecem nas imagens apresentadas, enquanto os indivíduos tem a possibilidade, ao menos imaginariamente, de se transformarem em pessoas. Talvez seja esse o sentido da foto publicada na Folha há dois dias, onde se viam duas indigentes em sua sala de estar instalada numa praça do Bom Retiro. Debaixo da árvore, sobre uma mesinha, o televisor que não funciona…

* * *

Tudo isso me leva a crer que um movimento que pretenda enfrentar o problema da dominação no Brasil talvez precise atuar em duas frentes: por um lado, terá que fazer a crítica do indivíduo, dessa abstração que é o trabalhador livre, pressuposto básico da sociedade capitalista; mas também terá que desfazer, desinvestir o código das relações pessoais, o código hierarquizante e autoritário expresso no “Você sabe com quem está falando?”. É o que fazem por exemplo, na área cultural, as músicas de Luis Melodia ou os filmes de Julinho Bressane.

Um outro exemplo do que estou dizendo é a fala do Lula num debate televisivo com os outros candidatos. Constato que a fala do Lula não procede do mesmo registro que o discurso dos outros candidatos, que é um discurso de pessoas. A fala dele é ação, enquanto a dos outros é representação. Quando o Lula responde, de repente o tom muda, a dicção é outra, o comportamento não é o que habitualmente se espera de um político. Tudo é diferente. A fala é movimento, é um segmento de um movimento muito mais amplo, ela estoura como uma onda desse movimento, para voltar a ele e por sua vez produzir efeitos. Por isso mesmo esta fala é inimitável. Lendo a transcrição do debate na imprensa, constato por exemplo que Montoro, o candidato da esquerda tradicional, retoma vários dos enunciados avançados por Lula. Mas os retoma apenas no plano da expressão, para incrustá-Ios dentro do seu próprio discurso – processo que os dilui completamente. Talvez seja essa a razão por que sentimos que se abre um fosso na tela: de um lado Lula, com a fala singularizada de um movimento; de outro, o discurso representativo dos candidatos-pessoas.

Publicado in
SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia da Letras – Editora Schwarcz, 1989. pp. 13 a 34.

tempo de ensaio

 

Nota: intervenção apresentada na mesa-redonda com o psicanalista Félix Guattari sobre “Cultura de massa e singularização” na Folha de S. Paulo, a 3 de setembro de 1982. Publicada posteriormente na revista Change International, Paris, Fondation Transculturelle Internationale/Laffont nº 1, outono de 1983, sob o título “Pour qui vous vous prenez?”; bem como no livro de Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolíticacartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1986.
Imagem na home: variação de Fonte na Corrente (1934) de Paul Klee, ecoando a capa criada por João Baptista da Costa Aguiar para o livro em que este ensaio foi publicado [capa sobre esta mesma obra de Klee].
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