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Em 1959, Elias Canetti tem 54 anos quando escreve em seu caderno de notas: “Ontem, o manuscrito de Massa e poder foi enviado para Hamburgo.

“Há 34 anos, em 1925, tinha pela primeira vez a ideia de escrever um livro sobre as massas. Mas a verdadeira fonte é mais antiga: ela data de uma manifestação de operários que ocorreu em Frankfurt por ocasião da morte de Rathenau. * Eu tinha então dezessete anos.

“Sob qualquer aspecto que a olhe, minha existência de adulto sempre me aparece como preparando esse livro. Desde que vivo na Inglaterra (mais de vinte anos, portanto), só trabalhei nisso, embora tenha havido trágicas interrupções. Valia tamanho desdobramento? Não terei então deixado de fazer outras obras? Como saber? O que fiz, devia fazer. Eu trabalhava sob uma coerção que jamais compreenderei.

“Falei desse livro antes de ter algo além de minha intenção de escrevê-lo. Anunciei-o com a maior pretensão para melhor agrilhoar-me a ele. Todos os que me conhecem instavam-me a acabá-lo, mas só o fiz no momento certo. Ano após ano, meus melhores amigos perdiam a confiança que tinham em mim; ele demorava demais – eu não podia levá-los a mal.

(*) Walther Rathenau (1867-1922), industrial alemão. Durante a Primeira Guerra Mundial, organizou o esforço industrial de seu país com notável eficiência. Judeu, foi assassinado por um extremista de direita. (N. E.)

“Agora, digo-me que consegui pegar este século pela garganta.”

* * *

É a este livro inestimável que o leitor brasileiro vai ter acesso, em correta tradução. Massa e poder é a obra de uma vida, vida que se entrega inteira a uma exigência, que se dissipa numa espantosa travessia da história e da cultura universal, vida única que no entanto se mescla ao destino de todos nós a ponto de Canetti poder se dizer, com simplicidade e sem orgulho, que pegou o século pela garganta.

Canetti só diz os fundamentos, não das estruturas da sociedade e do indivíduo, mas dos processos. Dos processos que levam cada um a buscar na morte do outro o alimento de sua própria vida. Dos processos cujos efeitos têm imenso alcance social, psíquico, econômico, político, religioso, artístico. O leitor sente que, aqui, só se diz o absolutamente necessário sobre os processos mínimos que, desdobrados, multiplicados, aperfeiçoados, refinados, fizeram da história a encarnação da violência e da dominação, da guerra e da exploração. E o que é propriamente inaudito no relato desses processos: Canetti não o elabora intelectualmente, mas sensivelmente. Canetti sente, não pensa, a história; e, na medida em que escreve de dentro dos afetos que ela produz, seu discurso é incomparável, inatribuível a qualquer corrente filosófica e até mesmo a determinado campo do conhecimento.

Canetti perscruta no corpo as formas germinais de poder e os afetos que as acompanham. Por isso o corpo se faz presente no livro, de ponta a ponta. Corpo do indivíduo que teme o contato com o outro e que se libera do temor na massa; corpo que se funde na unidade da moeda e da nação ou que se joga na religião; corpo que pega, mata e come a presa, revelando assim as entranhas do poder; corpo que exerce a força e se move velozmente; corpo que recebe a ordem, essa sentença de morte, e, ao executá-la, passa a sofrer o tormento do aguilhão; corpo que se metamorfoseia ou, ao contrário, é fixado na escravidão; corpo ereto, sentado, deitado, de cócoras ou ajoelhado, exprimindo as posições de poder; corpo irremediavelmente mortal do soberano, que deseja sobreviver a todo custo.

Em Massa e poder há uma verdadeira fisiologia do poder, e não uma psicopatologia. Fisiologia que mostra o profundo parentesco entre o paranoico e o soberano, entre Schreber e Hitler. Ambos são objeto da mesma paixão, do “mal original da humanidade, sua maldição e talvez sua perdição” – ser Um, ser o sobrevivente, aquele que, com a colaboração das massas, pretende superar a morte transferindo-a para o corpo do outro, num processo inverso ao do xamã, que morre enquanto sujeito no fluir das metamorfoses, até poder convocar entre estas as forças de que necessita para as transformações da vida.

Ora, a partir da explosão da bomba atômica em 1945 mudou radicalmente a situação do sobrevivente. Enquanto, a leste e a oeste, armavam-se enormes massas duplas que podem correr perigosamente para a guerra, os soberanos de hoje dispõem de um poder de destruição absurdo, impensável, que coloca a humanidade diante de uma encruzilhada: ou todo o mundo sobrevive, ou ninguém.

“Existe alguma possibilidade de se reduzir o sobrevivente que cresceu até atingir estas monstruosas proporções? Esta é a pergunta maior e, poder-se-ia dizer, a única. A especialização e a mobilidade da vida moderna fazem com que se torne enganosa a simplicidade, a concentração, desta pergunta fundamental.”

Mas a ela vem somar-se uma outra questão, que aumenta de modo alarmante a lucidez a respeito da gravidade da época em que vivemos. Pois que coerção, que exigência é essa que ordena o trabalho de Canetti, que o faz fazer o que devia fazer? Que voz é essa que lhe dita a urgência da obra e mantém aceso o fogo da perseverança? Canetti afirma que jamais a compreenderá – e, através da asserção, lança-nos um problema terrível. Talvez, como os bosquímanos, homens cujo corpo diz a iminência de certos acontecimentos, Canetti pressinta que o sobrevivente vá livrar-se do seu próprio medo ordenando a morte em massa, a morte nuclear. Então a voz que lhe dita a urgência da obra não é a voz da ordem, do comando, da sentença de morte. É a voz do corpo de Canetti, a voz da vida que, mais do que nunca, precisa ser ouvida.

“Quem quiser reduzir o poder”, escreve ele ao terminar seu livro, “deve encarar a ordem, frente a frente, sem temor, e encontrar os meios para despojá-la de seu aguilhão.” Massa e poder é o fruto desse processo vivido por Canetti, dessa vida que, destemida, caça o poder do sobrevivente nos mais secretos recônditos do corpo e, revelando-o, desfaz a sua sentença.

Publicado in
SANTOS, Laymert Garcia dos. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia da Letras – Editora Schwarcz, 1989. pp. 95 a 98.

tempo de ensaio

 

Nota: também publicado em Leia Livros, ano VI, no 60, São Paulo, 15 de agosto – 14 de setembro de 1983.
Imagem na abertura do post: alemães saúdam Hitler durante os jogos olímpicos. Berlim, 1936. (foto: Bettmann/Corbis)
Imagem na home: variação sobre a mesma.

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