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Somos o país de maior megadiversidade; a questão da apropriação dos recursos genéticos do Brasil torna-se central

Começa hoje [08/06/1999] no Senado um seminário de três dias sobre impactos e perspectivas da biotecnologia, reunindo a nata dos especialistas brasileiros de todos os horizontes. Ali serão discutidas as relações entre a novíssima revolução tecnológica e o ambiente, a agricultura, a saúde, a legislação, a bioética e a biossegurança – oportunidade única para questionar as opções estratégicas que o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso adota nesse campo.

Com o desenvolvimento da informática, nos anos 70, e da biotecnologia, a partir dos 80, abriu-se para a tecnociência a possibilidade de explorar a informação, isto é, a terceira dimensão da matéria, depois da massa e da energia. Definida por Gregory Bateson como a diferença que faz a diferença, a informação é essa unidade mínima, molecular e intangível, ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa, que compõe a matéria inerte e o ser vivo e que agora poderia ser apropriada.

Rapidamente, o grande capital descobriu a importância de colonizar essa dimensão virtual da realidade; entendeu que seu futuro consistia em controlar a modulação dos processos, não mais a fabricação de produtos. E concluiu que tanto a informação digital quanto a genética tinham de ser privatizadas, o que se fez pela ampliação do conceito de propriedade industrial, universalizado, então, como propriedade intelectual.

A articulação da informação digital e genética com o regime jurídico da propriedade intelectual permitiu ao grande capital instaurar uma ordem de alcance ao mesmo tempo global e molecular, que vai concretizar sua estratégia de apropriação absoluta da natureza por meio da recombinação e da reprogramação de seus componentes.

Mas tal operação exige a desvalorização de todo o conhecimento existente e da própria vida (vegetal, animal, microorgânica e inclusive humana), que se tornam pura matéria-prima para a digitalização e a manipulação genética, essas, sim, geradoras da nova riqueza privada. Não é à toa, por exemplo, que a Monsanto pressiona para que a adoção de sementes transgênicas se dê a toque de caixa: trata-se de tornar irreversível o processo de biotecnologização da agricultura.

Surge a pergunta: como entramos nós nessa estratégia? Antes de tudo, cabe lembrar que, apesar dos sonhos e aspirações de nossos cientistas e tecnocratas, não estamos na ponta do processo: a participação brasileira no registro mundial de patentes é inferior a 1%! Isto é: não temos tecnologia, e as chances de obtê-la são cada vez menores. Em compensação, somos o país de maior megadiversidade do planeta. A questão da apropriação dos recursos genéticos do Brasil torna-se, portanto, central.

Ora, o que pensa fazer o governo FHC? Nada menos que a transferência de uma riqueza que é patrimônio de interesse público para a indústria da biotecnologia. O projeto de lei de acesso aos recursos genéticos elaborado pelo Executivo é um modelo de engenharia neoliberal. A proposta compõe-se de uma emenda ao artigo 20, inciso XII, da Constituição -que inclui o patrimônio genético, exceto o humano, como bem da União, equiparando-o aos minérios- e de um projeto de regulação do acesso de caráter exclusivamente comercial, pois ignora os aspectos sociais e ambientais da biodiversidade.

No cerne desse projeto encontram-se as definições de patrimônio genético como um conjunto de componentes informacionais e de conhecimento tradicional associado como um conjunto de informações. Tais definições têm o fantástico poder de converter as plantas, os animais, os microorganismos e todo o conhecimento coletivo elaborado ao longo de séculos num enorme banco de dados virtuais, que o Estado poderia vender como bem entende. Pois ali, como observa o jurista Carlos Marés, o patrimônio genético só é nacional como virtualidade, como idéia dele na natureza. Mais, só é nacional até sua apropriação privada: uma vez acessadas, compradas no varejo, as informações virtuais podem ser atualizadas e recombinadas de tal modo que possam ser patenteadas e monopolizadas pela indústria da biotecnologia.

Parece ficção científica, mas não é. A virtualização da economia a que estamos submetidos pelo governo FHC já provocou, nos últimos tempos, uma gigantesca transferência de recursos da esfera pública para os bancos e fundos de investimentos, comprometendo o futuro da próxima geração. A virtualização da biodiversidade vai mais longe: permite a invisível transferência e a alienação das bases da própria vida.

Publicado in

Folha de São Paulo, Opinião, Terça-feira, 08 de Junho de 1999.

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