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A “virada cibernética” que, desde os anos 70 do século XX vem consagrando a centralidade crescente da informação (digital e/ou genética) em todos os setores da atividade humana, por reconfigurar o que entendemos por vida, trabalho e conhecimento, não parece ter, ainda, despertado os artistas para a radicalidade da mudança de perspectiva que comporta. Com efeito, quem freqüenta as exposições de arte contemporânea e procura comparar a ousadia do que vê às sucessivas rupturas que estão sendo postas em prática pela tecnociência, não deixa de ficar espantado com a perda do potencial transformador de boa parte das práticas estéticas – a comparação deixa claro que, diante da intensa aceleração econômica e tecnocientífica, diante dessa espécie de mobilização total, para falar como Ernst Jünger, a arte, com raras exceções, parece perder a dianteira, limitando-se, quando muito, a tentar acompanhar a dinâmica desenfreada.

Se nos limitarmos à informação genética, que é aqui o que importa, fica claro que, nos últimos anos, têm surgido no circuito propostas de bioarte e de arte transgênica, tentando problematizar as relações entre a natureza e a “segunda natureza” incorporada na tecnosfera. Mas, freqüentemente, as obras pecam pela timidez ou pelo caráter superficial, para não dizer pueril, de suas formulações que, via de regra, perdem o encanto ou a força quando o espectador “mata a charada” ou decifra a idéia que desencadeou o trabalho; ou, então, se revelam meras aplicações de princípios ou de procedimentos biotecnológicos transplantados de maneira acrítica para o campo da arte – como Alba, a coelhinha transgênica fosforescente, do artista brasileiro Eduardo Kac.

Ora, a questão se torna muito mais aguda se considerarmos a relação entre arte e tecnologia a partir da América Latina. Vários dos nossos países são megadiversos em termos de sócio e de biodiversidade, mas os artistas parecem não ter se dado conta do enorme potencial estético-político da complexa problemática dos recursos genéticos no continente, de suas implicações geopolíticas, econômicas, ambientais, sociais e culturais. A “virada cibernética” transportou a reflexão e a experimentação para o plano molecular da informação, entendida como “diferença que faz a diferença”, como dizia Gregory Bateson, isto é como resolução que atualiza potências do virtual; além disso, a “virada” nos fez compreender que, nesse plano, plantas, animais e o próprio humano podem ser considerados como agenciamentos singulares de informações, como maquinações específicas que processam as interações dos organismos e destes com o meio, dissolvendo, portanto, as identidades em processos de individuação nunca consolidados, sempre in progress; finalmente, a “virada” nos fez perceber que a tecnociência estava muito interessada nos modos como o conhecimento dos povos indígenas e das comunidades tradicionais “se associava” aos recursos genéticos embutidos em tamanha diversidade biológica.

Detenhamo-nos um pouco mais nesse ponto. Estudando a questão da invenção a partir do paradigma tecnológico e da noção de informação, o filósofo da técnica Gilbert Simondon descobriu que a ontogênese da individuação nos campos da física, da biologia e da tecnologia podia ser pensada por um único referencial teórico capaz de compreender o plano da realidade pré-individual a partir do qual os seres se individuam. Em cada um desses campos a invenção se dá quando a informação atua nessa realidade pré-individual, intermediária, que o filósofo denomina “o centro consistente do ser”, essa realidade natural pré-vital tanto quanto pré-física, que testemunha uma certa continuidade entre o ser vivo e a matéria inerte e também atua na operação técnica. Como afirma Simondon:

“O objeto técnico, pensado e construído pelo homem, não se limita apenas a criar uma mediação entre o homem e a natureza; ele é um misto estável do humano e do natural, contém o humano e o natural (…) A atividade técnica (…) vincula o homem à natureza.”[1]

[1] Simondon, G. Du monde d’existence des objets techniques, p. 245.

“O ser técnico só pode ser definido em termos de informação e de transformação das diferentes espécies de energia ou de informação, isto é, de um lado como veículo de uma ação que vai do homem ao universo, e de outro como veículo de uma informação que vai do universo ao homem.”[2]

[2] Simondon, G. L’individuation psychique et collective, p. 283.

A análise de Simondon estabelece a informação como uma singularidade real que dá consistência à matéria inerte, ao ser vivo (planta, animal, homem), e ao objeto técnico. E não seria descabido aproximar a formulação do filósofo do luminoso enunciado de Gregory Bateson, acima mencionado. Ora, a possibilidade de se conceber um substrato comum à matéria inerte, ao ser vivo e ao objeto técnico apaga progressivamente as fronteiras estabelecidas pela sociedade moderna entre natureza e cultura. Mais ainda: tudo se passa como se houvesse um plano de realidade em que matéria e espírito humano pudessem se encontrar e comunicar, não como realidades exteriores postas em contacto, mas como sistemas que passam a se integrar num processo de resolução que é imanente ao próprio plano. Se a técnica é veículo de uma ação que vai do homem ao universo e de uma informação que vai do universo ao homem, é fator de resolução de um diálogo intenso no qual o que conta é a interação, o caráter produtivo do agenciamento, e não as partes pré-existentes. Na base da virada cibernética encontra-se, assim, a capacidade do homem de “falar” a linguagem do “centro consistente do ser”.

A possibilidade de aceder, através da informação, ao plano da realidade pré-individual, plano que outros qualificam como dimensão virtual da realidade, possibilita portanto um outro entendimento dos processos de individuação. Plantas, animais, homens e máquinas passam a ser vistos como resultado de uma evolução que se dá não por adaptação, mas por invenção, atualização de potenciais efetuados pela diferença que faz a diferença. Rompem-se então as velhas fronteiras entre natureza e cultura, tornando-se possível compatibilizar a invenção tecnológica com a invenção da natureza porque ambas procedem de um solo comum que nos permite, inclusive, pensar a natureza como design. Mas, por outro lado, torna-se possível também compatibilizar a invenção tal como entendida pelo tecnólogo e a invenção tal como entendida pelo xamã.

Com efeito, como observa Geraldo Andrello ao estudar a narrativa mítica dos índios Tukano, “o mundo tal qual vivido por aqueles índios poderia muito bem ser descrito com base nas categorias propostas por Simondon”:

“sua tematização do longo período que antecede o aparecimento dos primeiros humanos corresponde a uma realidade pré-individual, um mundo de potências, dado através de uma ontologia demiúrgica, e que se resolve como um processo de individuação.”

O antropólogo considera que o papel reservado à informação por Simondon parece ser o mesmo desempenhado pela diferença na ontologia amazônica – oriunda que é daquele fundo virtual de afinidade potencial. E conclui:

“Assim, chegamos à questão de fundo: se Simondon merece ser relido hoje, certos modos de viver, tal como o dos índios da Amazônia, mereceriam ser valorizados, pois fazem de idéias muito próximas às do filósofo o próprio fundamento de suas sociedades e culturas. Eles não fazem filosofia, mas oferecem à nossa apreciação, entre outras coisas, uma mitologia vivida, que transporta uma mensagem a respeito de como lidar com o virtual, com a diferença, e talvez com a informação.”[3]

[3] Andrello, G. “Gilbert Simondon na Amazônia: notas a propósito do virtual”, in Nada, no. 7, Março de 2006, pp. 96 e ss.

Tudo se passa, porém, como se os artistas latino-americanos não tivessem nada a ver com esse mundo novo que se abre para uma percepção ampliada da floresta tropical como informação e da transformação da Amazônia (que é compartilhada por Brasil, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela) no cenário de uma confrontação entre a perspectiva de uma tecnociência globalizada e perspectivas locais, por exemplo, ameríndias. Tudo se passa como se os artistas vivessem de costas para nossa própria situação e condição, não percebendo que é precisamente nossa inserção singular na articulação entre natureza e segunda natureza que nos torna contemporâneos. Nesse sentido, talvez fosse mais produtivo que os artistas latino-americanos redescobrissem a si mesmos e a seus contextos dentro de uma dinâmica mais ampla, em vez de procurar correr atrás de tendências já delineadas no circuito internacional de arte, mimetizando a produção que se faz no Primeiro Mundo.

Mas, atenção: não proponho aqui nenhuma volta a nacionalismos ou quaisquer outros ismos que engessem as práticas artísticas numa equivocada e suposta busca da nossa “essência”. Evidentemente, não é disso que se trata, e sim de indagar como as novas tecnologias da informação podem nos ajudar a explorar as tecnologias da natureza, bem como a abrir um diálogo produtivo com tecnologias tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais. Trata-se de interrogar as possibilidades de atualização, aqui, de potências da dimensão virtual da realidade, que já estão sendo trabalhadas em outras latitudes e, é claro, em outras direções.

Assim, para evitar mal-entendidos, talvez convenha ilustrar o que estou tentando dizer com o exemplo de um trabalho radical que problematiza, ao mesmo tempo, os avanços da tecnociência, as questões da arte contemporânea e problemas estético-políticos engendrados na zona de intersecção entre ambas. E como este texto se inscreve no catálogo de uma exposição em território espanhol, pareceu-me ainda mais apropriado invocá-lo aqui.

O exemplo escolhido é o trabalho de Jake e Dinos Chapman, intitulado Insult to Injury, exposto no primeiro semestre de 2003 no Museu de Arte Moderna de Oxford, na mostra “The Rape of Creativity”, expressão difícil de traduzir, pois no caso a palavra rape poderia significar roubo, extorsão, violação, estupro ou arrebatamento da criatividade… Trata-se de interferências feitas pelos dois artistas britânicos nos originais de uma tiragem completa (80 gravuras) dos Desastres de la Guerra, de Goya, série produzida entre 1810 e 1815, e por eles comprada por 25 mil libras. Com efeito, pintando cabeças de filhotes de cachorro, de macaco ou de palhaço nas vítimas, colorindo com aquarela a obra do grande mestre espanhol, os Chapman parecem ter rompido a sacralidade das obras-primas da grande arte e inaugurado o que está sendo considerado por muitos como “vandalismo”, só comparável à atitude anti-social de um Coringa que, em Batman, depreda quadros no museu, poupando apenas a pintura de Francis Bacon…

Mas a rigor, como interpretar o gesto artístico dos Chapman? Em entrevista ao jornal Financial Times[4], Jake Chapman afirma:

“aquilo que faz de Goya um artista apaixonante é, por um lado, a íntima contradição entre a influência artística exercida sobre ele pelo Iluminismo e, por outro, a violência cometida contra seu povo em nome da razão. Diz-se freqüentemente que essa obra é uma representação do atroz. A meus olhos, Goya quis, sobretudo, expor o quanto a violência é necessária para a razão. Essas gravuras descrevem os mecanismos desta “moral esclarecida” pela qual a violência é um meio eficaz de demonstrar a necessidade absoluta de uma moldura ética.”

[4] Ver Monachesi, J. “Vandalismo conceitual”, Caderno Mais! Folha de São Paulo, 13 de julho de 2003, pp. 4 e 5. Ver também “Extensão do domínio da luta”, idem, pp. 6 e 7.

Ao interferirem na série, os Chapman não estariam então fazendo outra coisa senão atualizar e exacerbar a contradição entre violência e razão já admiravelmente exposta por Goya, reconfigurando a questão posta no início do século XIX para o contexto do início do século XXI. Nesse sentido, e de modo bastante instigante, os Chapman estariam retomando, no campo da pintura, um problema já apontado por Heiner Müller quando escreve:

“Goya está lá na sua Espanha reacionária, naquela monarquia, intensamente interessado pelas Luzes na França. E então finalmente algo novo acontece, as Luzes, a Revolução, mas sob a forma de um exército de ocupação, com todo o terror de um exército de ocupação. Os camponeses formam a primeira guerrilha para defender seus exploradores ameaçados. Eles combatem o progresso que vem ao seu encontro sob a forma do terror. É nessa situação de dilaceramento que aparece em Goya a pincelada larga e o traço quebrado. Não há mais contornos nítidos, não há mais toques de pincel definidos. Surgem as rupturas e também o tremor do traço.”[5]

[5] In Müller, H. Guerre sans bataille, p. 231.

Ora, que horizonte negativo é esse que, no início do século XXI, faz ressoar a problemática de Goya e incita à sua retomada radical? Se Goya capta o curto-circuito que faz com que o movimento que se desenhava da História para a Utopia se realiza, subitamente, como uma antecipação do futuro, no qual a Utopia se faz História como o negativo do que dela se esperava, que curto-circuito tentam captar os irmãos Chapman? Em outras palavras: se vivemos hoje numa situação de terror, o que se pode fazer para caracterizá-la, senão romper as fronteiras do conhecimento que separam as ciências, a arte e o pensamento sobre a sociedade?

Os críticos, preguiçosamente, preferem dizer que os ingleses querem provocar escândalo, ou referem Insult to Injury à Monalisa “retificada” por Duchamp e ao Erased De Kooning Drawing por Rauschenberg, sem atentar para a diferença que caracteriza o gesto dos Chapman. Com efeito, quando, em 1919, Duchamp pintou uns bigodes numa reprodução do quadro de Leonardo e escreveu embaixo: L.H.O.O.Q. (“Elle a chaud au cul”, “Ela tem fogo no rabo”), realizou um trabalho no qual convidava o espectador a efetuar uma operação mental de dessacralização da obra de arte – através de um “détournement”, a irreverência do gesto apontava ao mesmo tempo para a quebra de uma atitude religiosa frente à história da arte e para o deslocamento da criação, da tela para a mente: a obra não consistia mais na materialidade de sua fatura, tornava-se conceito. Assim, Duchamp ao mesmo tempo preserva o quadro de Da Vinci, interferindo na imagem que se faz dele; e, num certo sentido, restaura a possibilidade de vê-lo com olhos novos, removendo todas as camadas que o culto sobre ele depositaram. Por sua vez, quando Rauschenberg apaga um desenho de De Kooning, em 1953, não se trata de interferência na imagem, mas também, a rigor, tampouco de interferência na obra – o gesto visa desfazê-la, não destruí-la nem alterá-la, e funciona como um statement: para Rauschenberg, trata-se de declarar que é preciso encontrar um caminho próprio homenageando e reconhecendo, ao mesmo tempo, tudo o que esse caminho deve ao trabalho de De Kooning. Mas quando os Chapman reconfiguram as gravuras de Goya, modificando a obra original na sua própria materialidade, a questão é outra.

Na famosa e polêmica exposição “Sensation”, organizada na Royal Academy of Arts, de Londres, no segundo semestre de 1997, Jake e Dinos Chapman já haviam mostrado uma instalação intitulada Great Deeds Against the Dead (Grandes Façanhas Contra os Mortos), que encenava em três dimensões a gravura número 39 dos Desastres de la Guerra, Grande hazaña! Con muertos! A gravura de Goya retrata três homens mortos, mutilados ou despedaçados, talvez por presumida traição, durante a Guerra de Independência contra as forças invasoras de Napoleão. Como observa Jesusa Veja, a documentação histórica evidencia que foram muitas as vítimas a sucumbir por suspeita de traição, massacradas pela cega fúria popular que as via como tendo colaborado com o inimigo estrangeiro. Diz ela:

“(…) ‘é fácil interpretar quem foram os que realizaram tão grande façanha e quem são os mortos. De novo, Goya reflete com toda crueza sobre os resultados que se pode esperar de um povo ignorante, mas desta vez absteve-se de tornar explícita a imagem desse povo. Não existe ação alguma, na verdade a estampa é “um monumento de barbárie e atrocidade” na qual se exaltam a nobreza e a dignidade desses corpos mutilados sobre os quais incide a luz, evidenciando os tormentos injustos a que foram submetidos. (…) A intenção de Goya ao apresentar esse “espetáculo” não é horrorizar a visão – os rostos das vítimas até expressam tranqüilidade e as belas proporções dos corpos convidam à contemplação; pelo contrário, Goya pretende provocar a reflexão diante dessas imagens, já que as grandes façanhas nunca podem ser fruto dos excessos de “crueldade sanguinária”, nem do excesso de “heroísmo” e de “amor pátrio”.[6]

[6] Ver Goya y el espíritu de la Ilustración. Catálogo da exposição. Madri: Museu do Prado, 1988, pp. 306-307.

Retomando o trabalho do pintor espanhol, os ingleses, antes de tudo, começam por retirar as exclamações que pontuam este desastre: Great Deeds! Against the Dead! (Grande Façanha! Com Mortos!) se torna Great Deeds Against the Dead (Grande Façanha Contra os Mortos). Como que acentuando a caráter reflexivo do trabalho, sublinham o que há de terrível na morte e na mutilação dos corpos e, ao fazê-lo, chamam a atenção para a tensão que se arma entre natureza e cultura, isto é entre os indivíduos enquanto seres vivos e os sujeitos enquanto vítimas da História e, dentro de cada um desses pólos, a tensão entre violência e razão. A reflexão então se amplia: a “grande façanha” deixa de se circunscrever ao contexto histórico específico, à tragédia de uma sociedade desentendida de si mesma a ponto de se auto-devorar destruindo seus próprios filhos, para tornar-se a destruição do humano enquanto tal, em virtude da expansão universal do Iluminismo enquanto horizonte negativo. Como se a razão da violência fosse a violência da razão! Como se o curto-circuito detectado por Goya tivesse se desterritorializado para ganhar dimensões insuspeitadas! Amarrados e pendurados à árvore, castrados, despedaçados, os corpos comparecem como efeito de uma grande operação de desarticulação.

Operação cuja investida, aliás, só se torna plenamente legível após o contato com os outros três trabalhos dos Chapman nessa exposição: Ubermensch, instalação que mostra o Além-do-Homem nietzscheano sob a figura do físico Stephen Hawkings, sentado em sua cadeira de rodas e munido de seu laptop no alto de um rochedo; Zygotic acceleration, biogenetic, de-sublimated libidinal model (Modelo biogenético libidinal dessublimado de aceleração zigótica), conjunto de manequins de meninas presas umas às outras por torsos interligados, cuja contemporaneidade é atestada pelos tênis de marca e cuja existência se justifica como absurdo e fantasmático objeto do desejo – considerando-se seu polimorfismo sexual, possibilitado pelos deslocamentos de sua genitália, e pelas múltiplas promessas de prazer sexual que pênis implantados, e vaginas, cabeças e ânus intercambiados, podem oferecer; finalmente, Tragic Anatomies, uma instalação que encena uma espécie de Jardim das Delícias, no qual uma série de manequins – cujos corpos figuram diversas combinações de irmãs siamesas – convidam o espectador a se comprazer com o espetáculo de inéditas e insólitas baigneuses, conforme a tradição da pintura.

Está se vendo que os irmãos Chapman estavam discutindo os paradoxos da tecnociência na arte e na sociedade contemporâneas, e mais particularmente, as aspirações, desejos e fantasmas que a biotecnologia está suscitando. Entretanto, existe uma diferença entre os trabalhos apresentados na “Sensation” e Insult to Injury. É que nos primeiros, a relação entre violência e razão se expressava no objeto e na imagem oferecidos ao olhar, como se os artistas quisessem materializar e tornar visível a operação de destruição e recombinação dos corpos e de suas partes pela tecnociência, e suas implicações para o humano; em contrapartida, no último, trata-se de fazer, no campo da arte, exatamente o que se está fazendo nos laboratórios de biotecnologia, para que o espectador se dê conta do alcance da operação. Com efeito, por que a intervenção nos originais de Goya é chocante e tornou-se um escândalo? Justamente porque se trata de gravuras originais, e não de reproduções. Os Chapman se apropriaram dessas gravuras e, introduzindo componentes que lhes eram estranhos, alteraram definitivamente a composição do todo, transformando, em conseqüência, e de modo irreversível, o valor desse patrimônio. Como se as gravuras de Goya fossem um genoma raro e precioso, cujas singularidades e virtualidades estimulam a tentação da reinvenção, isto é um novo design, capaz de promover uma nova atualização. Arte transgênica por excelência, não só nos resultados visíveis, mas principalmente nos procedimentos operatórios, o trabalho dos ingleses nos leva a perguntar se a recombinação de uma obra-prima da arte não é uma demonstração do sentido da recombinação de espécies de plantas, de animais e até mesmo dos corpos humanos, entendidos pelos artistas como obras-primas da evolução, e que agora se tornam passíveis de recriação.

Insult to Injury é, evidentemente, uma grande provocação. Mas, parece-me, é de provocações à altura dos desafios lançados pela “virada cibernética” que precisamos. A biotecnologia está suscitando um importante deslocamento de nossa percepção da vida. O encontro/desencontro da biotecnologia com a biodiversidade na América Latina antecipa os devires na região. Cabe aos artistas expressá-los estética e politicamente.

Texto originalmente publicado em espanhol e inglês no catálogo da exposicição EMERGENTES, LABoral Centro de Arte y Creación Industrial, Gijón, de 16 de novembro de 2007 a 12 de maio de 2008. (ISBN: 978-84-612-1959-9)
© das fotografias: os autores

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