Skip to content

Em 1990, o filósofo Gilles Deleuze escreveu em “Post-Scriptum Sobre as Sociedades de Controle”:

“Trata-se de um capitalismo de sobreprodução. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. (…) O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma” da empresa. Informam-nos que as empresas têm alma, o que é efetivamente a notícia mais aterradora do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social e forma a raça impudente de nossos senhores”.

A aguda percepção de Deleuze sobre as transformações de fundo no capitalismo contemporâneo impõe-se com tamanha força durante a leitura de “Sem Logo” que parece quase impossível não ver boa parte do livro como sua involuntária ilustração. Isso, porém, não diminui em nada o mérito do trabalho de Naomi Klein, publicado dez anos depois – até porque ao panorama da expansão estratégica das marcas ela contrapõe a disseminação das lutas que se desenvolveram durante toda a década contra as corporações e que ainda não haviam despontado no cenário político internacional quando o filósofo escreveu o texto acima.

Trata-se de um livro militante, escrito em linguagem jornalística, que deve ser lido na esteira do movimento antiglobalização, portanto à luz das revoltas de Seattle, Montreal, Washington, Gênova e das reuniões do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

Como esclarece a autora, na “Introdução”:

“O título “Sem Logo” não deve ser interpretado como um slogan literal (como em “Chega de Logomarcas!”) ou como um logo pós-logo (já existe uma linha de roupas “No Logo”, ou assim me disseram). Em vez disso, é uma tentativa de apreender uma atitude anticorporação que vejo surgir em muitos jovens militantes. Este livro apóia-se em uma hipótese simples: quando mais pessoas descobrirem os segredos das grifes da teia logo-mundial, a revolta estimulará o próximo grande movimento político, uma grande onda de oposição dirigida contra corporações transnacionais, particularmente aquelas com marcas muito conhecidas”.

Agentes de significado


A jornalista canadense concebeu seu livro em quatro blocos: “Sem Espaço”, “Sem Opções”, “Sem Empregos” e… “Sem Logo”. Os três primeiros descrevem criticamente a formação de uma rede tentacular de marcas que ambiciona colonizar o planeta, conquistando os corações e as mentes por meio de sua onipresença e valorização incessante; o último procura mapear as manifestações que, nascendo nos “campi” e nas comunidades, nas ruas ou na cena cultural, nos tribunais ou na internet, no Primeiro ou no Terceiro mundos, fizeram da rebeldia contra as marcas e da atitude anticorporação o vetor de expressão da resistência à globalização neoliberal. Como se Klein pretendesse primeiro nos fazer ver a força específica do capitalismo na era do marketing, para depois esboçar as linhas de contra-ataque.

Vamos, porém, por partes. Os capítulos de “Sem Espaço” narram o deslocamento de foco da fábrica para a empresa, da fabricação para a promoção de vendas e principalmente das coisas-produtos para as imagens de marca. Vários autores já apontaram a importância socioeconômica desse processo de “desmaterialização” e dele tiraram as mais variadas conclusões. Aqui, entretanto, interessa saber como a Reebok, a Disney, a Levi’s, a Calvin Klein ou a Body-Shop passam de fabricantes de produtos a “agentes de significado”, já que o “branding” consiste em desenvolver a espiritualidade do produto como encarnação da transcendência corporativa.

Como escreve Naomi Klein: “Se as marcas são “significado” e não características de produto, então a maior proeza do “branding” surge quando as empresas fornecem a seus consumidores oportunidades não apenas de comprar mas de experimentar plenamente o significado de sua marca”. Assim, num mundo completamente desencantado e dessacralizado, a mercadoria emerge efetivamente como fetiche, não só no sentido conferido por Marx, mas também como uma aura que será louvada pelas corporações e adorada pelos consumidores.

Culto da marca


Apagando as fronteiras entre comércio, religião e cultura, o marketing promove o culto obsessivo da marca, cuja presença se revela não só na paisagem urbana ou nas telas eletrônicas mas também na música, nos esportes, nos eventos comunitários e escolares, e até mesmo nos banheiros das universidades! Tanto a esfera pública quanto a privada se vêem portanto crescentemente invadidas e remodeladas, todo espaço atual ou virtual torna-se passível de apropriação, inclusive o próprio corpo do consumidor, a ponto de o jovem empresário da internet, Carmine Collection, assim justificar sua decisão de tatuar o logo da Nike no umbigo: “Acordo toda manhã, pulo para o chuveiro, olho para o símbolo e ele me sacode para o dia. É para me lembrar a cada dia de como tenho de agir, isto é, “Just do It'”.

Com efeito, quando o “branding” passa a imaginar no lugar do inconsciente, o conceito de cidadão já foi absorvido pelo de consumidor e o de indivíduo é desconstruído e recombinado, lendo como as corporações “processam” as questões da identidade pessoal e da diversidade étnica e sociocultural, parece que na perspectiva do capitalismo global a única identidade que ainda faz sentido e deve ser preservada é a identidade da marca.

A ocupação dos espaços é acompanhada de um encolhimento progressivo das alternativas. No bloco “Sem Opções”, a autora explora como as corporações combatem as marcas concorrentes e asseguram sua onipresença por meio do sistema de franquias (que leva à canibalização dos pontos de venda), das fusões (que tornam imbatível a sinergia das empresas gigantes) e da censura corporativa (que não tolera um arranhão na imagem das marcas, no momento mesmo em que pratica a marcação de nossos corpos e mentes). Basta lembrar que o McDonald’s travou uma batalha de 26 anos contra um homem chamado Ronald McDonald, cujo McDonald’s Familly Restaurant, em uma minúscula cidade em Illinois, funcionava desde 1956…

O terceiro bloco, “Sem Emprego”, é dedicado ao descarte da fábrica, à flexibilização do trabalho e à transformação dos criadores de emprego em criadores de riqueza. Em suma, aqui Naomi Klein trata da degradação das condições de produção e de vida dos trabalhadores como a outra face da glorificação das marcas e supermarcas. Não há mais valor em produzir coisas: o valor é agregado pela pesquisa, pela inovação e pelo marketing.

O toque de Midas


Como “imagem é tudo”, as empresas terceirizam alegremente a produção, concentrando-se na dimensão incorpórea. Uma incursão da jornalista em Cavite, na Indonésia, permite então descobrir como os tênis, computadores, roupas etc. são produzidos em condições subumanas, nas chamadas zonas de livre comércio -hoje 27 milhões de pessoas vivem e trabalham nesses bolsões do Terceiro Mundo que constituem o paraíso da “globalização de risco zero” e o inferno da superexploração da mão-de-obra.

Trabalho infantil, violência, achatamento salarial, horas extras, medo e ameaça constante de fechamento das fábricas, segregação: vale tudo para fazer com que um tênis vendido por US$ 120 na Nike Town de São Francisco custe US$ 2 para ser produzido na Indonésia; ou que a camiseta Pocahontas da Wal-Mart se equipare a quase cinco dias de salário dos operários que a confeccionaram no Haiti. Na outra ponta, os executivos globais que consumam o processo de desmaterialização são contaminados pelo “toque de Midas” que o halo das marcas lhes dá e se tornam eles próprios “superstars”.

Finalmente, “Sem Logo” discute a contestação às marcas e às corporações. Primeiro a esperta “culture jamming”, que consiste na apropriação indébita dos logos, seja desvirtuando seu significado, seja desrecalcando toda a sua perversidade latente. A ela se acrescentam a reivindicação de espaços não-colonizados, expressa pelo bem-humorado movimento de resgate das ruas e as campanhas de ataque e boicote às marcas, particularmente à Nike, à Shell e ao McDonald’s, cujas histórias são relatadas no livro. Questionadas e pressionadas, as corporações tentaram preservar sua imagem formulando “códigos de ética empresarial”. Mas já era tarde demais: no final da década o conflito extrapolara para além da marca, somara-se a outros processos e lutas, engrossando o movimento de resistência à globalização.

Agora os sem-terra, os índios de Chiapas, os militantes de todas as causas, os ambientalistas, as minorias do Primeiro e do Terceiro mundo formam uma “coalizão de coalizões” para afirmar que “um outro mundo é possível”. Até que ponto tal movimento configura a existência de alternativa(s) à globalização neoliberal é, evidentemente, uma questão em aberto.

De todo modo, algo está acontecendo. Otimista, Naomi Klein arrisca: “Deve ter alguma coisa, acho eu, com a própria definição de revolução”.

Resenha

Sem Logo – A Tirania das Marcas em um Planeta Vendido

Naomi Klein
Tradução: Ryta Vinagre
Record

Publicado in Folha de São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002. Jornal de Resenhas.
Back To Top