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Politizar as novas tecnologias

Em seu novo livro, o sociólogo alerta sobre a necessidade de politizar as tecnologias

por Alvaro Machado

Treze anos após a publicação de seu último volume de ensaios, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp, surpreende com um livro que representa um salto de pensamento na produção dessa disciplina no país.

“Politizar as Novas Tecnologias” (ed. 34) faz jus à reputação de Laymert no meio intelectual brasileiro: suas conferências sobre temas e disciplinas de várias coloraturas – da biodiversidade amazônica à videoarte do norte-americano Bill Viola – cativam audiências pela fluência, clareza e ousadia de raciocínio. Convites para palestras e seminários chegam ao escritório do professor, às vezes da Europa, às vezes da América Latina, que não se acanha em comparecer àqueles que lhe podem ampliar repertório.

Contudo, “Politizar as Novas Tecnologias – O Impacto Sócio-técnico da Informação Digital e Genética”, não é, de forma alguma, um livro fácil. Um pouco sob a égide do romancista inglês D. H. Lawrence, os textos reunidos em “Tempo de Ensaio” (Companhia das Letras, 1989), produzidos na década de 80, tinham como ponto de partida a virada do século XIX para o XX e observavam desde esse marco as modificações na compreensão do humano. O novo livro alinha ensaios escritos na década de 90 e muda o foco de tensão. “Tempo de Ensaio olhava para o passado para entender o presente, o novo livro volta-se totalmente para o futuro”, diz Laymert.

“Politizar as Novas Tecnologias” trata, portanto, de um panorama complexo, de um mundo de transformações vertiginosas, como um relógio de potência supersônica cuja mecânica não é sequer sonhada pelo comum dos mortais, seja pela velocidade extraordinária, seja pelo ocultamento sistemático de informações. Amalgamado de forma indistinguível ao capital global, o novo conhecimento digital e genético veste o manto do sigilo empresarial.

Contrapondo-se porém à máxima que reza que “o segredo é a alma do negócio”, os ensaios de Laymert Garcia fazem barulho e mapeiam para o leigo caminhos que há alguns anos fariam sentido apenas em páginas de ficção científica. A par de tais luzes, a partir de certo ponto a antologia pode, contudo, provocar no leitor certo acabrunhamento ou sensação de impotência, seja pela amplitude de sua temática ou pelo alcance da análise.

“Uma curadora de Berlim já havia me dito isso”, lembra Laymert. “Como é que você pode dizer tudo isso com um sorriso estampado na cara?”, perguntou ela. “Até posso entendê-la, mas não conheço outra forma de falar e não compactuo com o discurso apocalíptico, que hoje dita toda uma tendência cultural”, pondera o ensaísta.

“Politizar as Novas Tecnologias” tem orelha assinada pelo sociólogo Chico de Oliveira, que pauta sua análise do volume no “assombro provocado pela aparição do novo”, um conceito emprestado do teatrólogo alemão Heiner Müller (1929-95), freqüentemente citado no livro.

De fato, o texto “Müller e o Ritmo dos Tempos”, escrito a partir de uma entrevista com o dramaturgo em Berlim, é um dos ensaios capitais do volume e avança para o leitor o conceito de “pós-humano”, que parece destinado a sepultar, em um futuro brevíssimo, o “humano” cultivado pelas tradições clássica e moderna. “Müller deu uma dica que segui: ele disse que o humano terminaria por desaparecer no vetor da tecnologia. Acho que ele tinha fortes razões para afirmar isso”, afirma Laymert. Na entrevista a seguir, o sociólogo fornece outras pistas para a leitura de seu livro.

Entrevista

Qual o sentido da palavra “politizar” no título do seu livro?

Laymert Garcia dos Santos: É no sentido de trazer para o centro da discussão contemporânea a questão da tecnociência. Na medida em que até mesmo o sentido do que é humano vai sendo radicalmente desconstruído, é preciso que a sociedade ao menos se dê conta dessa transformação. É preciso que ela diga se a deseja ou não, que estabeleça em quais circunstâncias se dará esse processo e em que velocidade ele deve acontecer.

Você tem de fato esperanças de que a sociedade se organize e manifeste algo parecido?

Acho que não se trata da quantidade de gente que daria conta dessa transformação. É preciso, pelo menos, instaurar a discussão, até para se explorar as possibilidades de tirar o corpo fora, literalmente, dessa história. Pois temos, na cultura contemporânea, uma tendência cada vez mais apocalíptica, e essa “narrativa do apocalipse” pode estar preparando a aceitação de uma vertente que pode se tornar extremamente perigosa. O sentido de “politizar” é, na verdade, afirmar: “É possível, sim, pensar outros cenários, outras possibilidades, e elaborar a crítica dessa maneira de pensar”.

Esse hipotético “outro cenário” não poderia, no entanto, refutar a evidência da modificação atual da natureza humana, não é?

Tudo deve ser colocado urgentemente em discussão, na medida em que essa modificação da natureza humana pode ser irreversível, ou seja, esse pode ser o processo de constituição de uma outra natureza humana.

Mas, segundo seus textos, parece ser, já, um processo irreversível…

Realmente não dá para voltar atrás, mas não chegamos ainda ao ponto em que começamos a criar uma segunda natureza. Nos encontramos no limiar de uma transformação enorme. Veja, por exemplo, a discussão que agita hoje a filosofia. De um lado há Fukuyama, de outro Habermas, de outro Zizek, de outro os deleuzianos… E todos discutem o futuro do humano. Eles argumentam: a transformação da natureza humana é aceitável ou não? A ruptura com a natureza humana é algo que destrói os parâmetros do humanismo moderno ou não?

Trata-se, enfim, da própria noção de dignidade humana, que se encontra não apenas na base do pensamento filosófico moderno, mas do sistema jurídico ocidental, das instituições, das constituições… Quando chegamos ao fundamento das estruturas, encontramos invariavelmente a noção da dignidade humana. Ora, vários desses pensadores que observam a questão da biotecnologia e de seus rumos -não só na filosofia, mas na antropologia, na sociologia etc.- já consideram que a noção de dignidade humana acabou, ou ao menos já foi desmontada enquanto tal.

Alguns até dizem que se pode frear o processo. Já outros afirmam que é bom perceber dessa forma, pois já era fato consumado. A questão desmorona nossas bases, mas talvez não signifique o fim do mundo. É, talvez, o fim de um mundo. Essa questão é interessante: o fim de um mundo não é o fim do mundo. Mas para que esse novo mundo que está surgindo não se revele de uma carga negativa violentíssima, é preciso estabelecer uma discussão sobre as possibilidades que se abrem na nova configuração. Essa é a discussão.

Para você, essa perda da dignidade humana é fato?

Não dá para voltar ao mundo pré-descobertas da genética. O grande problema, para mim, já havia sido indicado por Heiner Müller: existe hoje uma estratégia de aceleração total, econômica e tecnocientífica, muito pouco discutida. O escritor colocava-se contra ela, dizia que é totalitária, que impõe um ritmo que boa parte da população mundial não pode alcançar -e quem não alcança esse ritmo entra automaticamente na faixa de exclusão, queira ou não.

Dessa forma, se estabelece um novo tipo de polarização entre excluídos e incluídos. Müller dizia: por que essa estratégia é totalitária? Porque não admite outras temporalidades, e as minorias trazem à cena outras temporalidades que não a da aceleração total. Ele dizia, em resumo, que o terreno das temporalidades será palco de uma luta extremamente política, que colocará em outros termos a questão da inclusão e da exclusão.

A estratégia política de aceleração é um fato nítido, mas isso não significa que a tecnociência deva obedecer necessariamente a essa velocidade e a essa estratégia. Há muitas maneiras de desenvolver ciência e tecnologia, e isso não representa voltar para trás: podemos desenhar uma outra via.

Essa estratégia não foi adotada quando a ciência cessou de considerar a questão ética?

Desmontou-se o referencial antigo, tradicional, e também o referencial moderno. Enquanto se desmontava apenas o referencial clássico, que foi o que a cultura moderna fez, estava tudo bem, todos achavam que uma vez destruído o primeiro referencial, todos embarcariam no novo projeto. Entretanto, desde os anos 70 começou a ficar claro que esse outro tempo não é para todo mundo. O projeto, ou sonho, de que todos estariam incluídos na modernidade não existe mais.

Tal projeto tinha fortes raízes no pensamento socialista, não?

Mas não só, já que o próprio capitalismo também acreditava ser inclusivo -e ele o era até a década de 70. Quando o capitalismo passou a não mais ser inclusivo, aumentou o fosso entre os que estão dentro e os que estão fora do novo projeto. Houve a aceleração brutal do desenvolvimento tecnocientífico e da própria sociedade onde ele se verifica.

Existe, hoje, algo como uma espécie de trem-bala do conhecimento e existe, também, a ilusão de que estamos todos nesse trem. Mas Müller dizia: não dá para embarcar nesse trem em movimento. Muita gente que quer, ou que não quer, não se encontra nele. E a estratégia daqueles que se encontram no trem é totalitária com relação aos que lá não estão, pois esse trem não admite outra velocidade que a sua.

Não existe mais, também, a influência dos Estados ditos socialistas, cujo contraponto freava tal processo.

Se não temos mais utopias, há, por outro lado, a própria realização da utopia, mas de modo acelerado, numa velocidade que não é para todos, e isso conduz à ruptura com o próprio projeto moderno. Na verdade, o desenrolar desse processo já quebra o referencial moderno, como o próprio moderno demolia os referenciais tradicionais. Do ponto de vista da informação digital e genética, ou do pensamento cibernético, tanto faz se o elemento é tradicional ou moderno, pois tudo será passível de recombinações.

Destruídos o referencial antigo e o moderno, seria preciso constituir uma nova ética, não?

Construir um outro projeto, diferente do moderno e do tradicional, pois naquilo que está acontecendo agora não existe ética alguma.

E pode nem chegar a existir nenhuma.

Sim. O filósofo inglês Keith Ansell Pearson, por exemplo, lembra que o pós-modernismo afirmava que todas as grandes narrativas estavam destruídas. No entanto, hoje se constrói uma nova grande narrativa, à qual o filósofo se opõe. Essa narrativa é a da obsolescência do humano, e nós a encontramos nas artes visuais, no cinema, na literatura, e principalmente em ramos da tecnociência que pensam a superação do humano pelo chamado pós-humano.

Há duas vertentes distintas: uma privilegia a superação do humano segundo a hipótese de que o humano nada mais é que um “computador de carne” que pode ser superado por outros suportes, e essa é a linha da robótica contemporânea. Sobre esse assunto, recentemente o caderno “Mais!”, da “Folha de S. Paulo”, publicou o texto “Humano 2.0”, de Kurzweill, uma prospectiva de robótica. O humano não consegue processar o que é necessário na velocidade esperada, e portanto estaria em extinção… Isso tudo parece ficção científica, mas quando começamos a estudar, vemos que os cientistas já concretizam essa ficção científica.

Outra linha, menos ambiciosa, não procura realizar o “download” do espírito em outros suportes que não o humano e, portanto, a obsolescência do humano não importaria tanto. Para esta vertente, o que conta é a transformação do humano e, no limite, uma nova eugenia.

Ora, Pearson, entre outros, opõe-se a esse pensamento. Para ele, é preciso desmontar politicamente tal narrativa. Não há volta para trás porque não é possível voltar a ser moderno ou tradicional. Porém, o que podemos propor como contraponto? Podemos pensar que o humano talvez não tenha se esgotado, que justamente agora ele poderá se desenvolver de um modo completamente novo e diferente.

Seria como uma nova grande prova?

Sim, o devir está em aberto, o humano não está selado, seu destino é aberto. Existe nessa reflexão uma positividade muito grande, que não está sendo considerada pelo “mainstream” da tecnociência.

Queira-se ou não, essa mudança atinge a todos, tanto incluídos como excluídos. Não há como se isolar, certo?

Não há, e isso aprendi trabalhando nas ONGs em torno de comunidades indígenas brasileiras. Um belo dia descobre-se que uns norte-americanos foram lá coletar material humano -unhas, pele e cabelos daquela população, enfim, material genético- sem dizer para o que servirá.

Publicado in
Revista Trópico, dossiê novas políticas
Imagem na home: detalhe de desenho de Moebius
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